13 março 2024

 

OS ITALIANOS E A ÁGUA

* crônicas poçõenses *

 

                                          Seu Joaquim (aguadeiro)
Em Poções, até o final de 1950 não havia água encanada. A cidade era abastecida pelos aguadeiros, que traziam a água em carotes, no lombo de jumentos. Quatro carotes faziam uma carga e era comum vê-los passar pelas ruas. As casas tinham sempre uma entrada de serviço, para este fim, com uma argola no muro, para amarrar os animais.

Os carotes – barris de madeira – com capacidade em torno de 20 litros, eram tampados com tarugos de madeira ou sabugo de milho, envoltos em pano. O furo do suspiro era indispensável, para que a água desse vazão. Tinham duas alças de ferro, para pendurar na cangalha, e que ajudavam na hora em que eram carregados no ombro.

 A água boa de beber vinha de Cachoeirinha, distante uns quatro quilômetros, e era despejada, devidamente coada em um pano de algodão, direto nas grandes talhas de barro. A tampa da talha era redonda, de madeira, com uma haste, para facilitar o manuseio. Dentro eram colocadas pedras de enxofre, pois os filtros de barro com velas só vieram tempos depois.

A água de uso comum vinha do açude do rio São José, mais perto da cidade. Os aguadeiros tinham sempre de subir uma escada para despejar a água no tanque da casa, onde também havia pedras de enxofre.

Tempos depois meu pai mandou instalar uma bomba manual em um pequeno tanque ao nível do chão, onde o aguadeiro ia despejando os seus carotes e  a nós, meninos, cabia a tarefa de acionar a bomba, jogando a água no reservatório superior !

Outra fonte de água era a chuva. Em nossa casa havia um enorme tanque – parte  subterrâneo, parte externo – que acumulava a água de chuva. Quando meu pai estava na Casa Sarno e começava a chover ele ia para casa e manobrava as calhas para que a primeira chuvada- ou “apaga pó”, como é apropriadamente chamada em algumas regiões da Bahia - servisse apenas para limpar as telhas, e logo em seguida a água era canalizada para o reservatório. Fazer calhas e bicas era um trabalho artesanal, feitas sob medida com folhas-de-flandres pelos funileiros locais, como Deco Lago e Flávio Funileiro.

 Em frente à nossa casa, o aguadeiro favorito dos tios Valentim, Camilo e Emílio era Zé Peteleca. Alto, muito ativo e sorridente, quando passava pela varanda da casa e via Rosa Alba, minha prima, com duas trancinhas no cabelo e rosto redondinho  de anjo, dizia: “Bom dia, minha prencesa !”  Rosa ficava maravilhada, divagando no imaginário das fadas, castelos e príncipes ...

Mais acima, ainda na Rua da Itália, Luis Sarno, com o terreno da casa em declive, fazia malabarismos mecânicos para coletar e distribuir a água na casa, para uso da família e do seu lazer predileto: cuidar das plantas e árvores frutíferas.

 Havia ainda uma outra opção em nossa casa, que era a cisterna. Diferente da cacimba, a cisterna tem uma proteção de alvenaria em volta e é coberta. Quando olhávamos para o fundo podíamos ver as enormes pedras que foram quebradas para se atingir o minadouro. Era um terror para nós, meninos, pensar em cair ali dentro !

A água da cisterna era retirada com roldana, e era uma arte encher o balde de água, lá em baixo, na ponta da corda. Depois foi colocada uma bomba manual. Mas a água era “pesada”, um pouco salobra, não se prestando para o uso doméstico. Ela era então despejada em um grande tambor forrado de cimento, que ficava no meio do jardim, e servia para regar as plantas.

 Para o banho, meu pai, com a ajuda do cunhado Chico Sangiovanni, mandou fazer um engenhoso sistema de serpentina para aquecer a água. Como a cozinha ficava perto do banheiro, foi colocado um pequeno tanque na parte superior, do qual descia a tubulação que dava uma volta no fogão, que era a lenha. Assim, a água quente era constante e sem custo.

O fogão já vinha equipado com um recipiente esmaltado embutido, que também aquecia a água para o preparo da comida, pois não se usava jogar água fria nas panelas. Minha mãe também conservava uma chaleira com água aquecida, em cima da chapa do fogão, para qualquer eventualidade, como era usual na época.

 Os dormitórios das casas, em geral, ficavam distantes da copa ou da cozinha. Assim, era de grande utilidade o uso das moringas, seja de barro ou de vidro.

Esta dependência do trabalho  dos aguadeiros durou até que foi inaugurada a água encanada, vinda da barragem de Morrinhos, no rio das Mulheres, distante cerca de doze quilômetros, já perto da Serra da Ouricana. Quando abriram o registro, a comitiva de autoridades veio em disparada para Poções, para abrir a primeira torneira que jorraria a água encanada!

 O trabalho para colocar as tubulações nas ruas durou algum tempo, e as valas ficavam abertas.

 Do alambique da fazenda de Waldemar Guimarães – feito por José Domarco – saia uma “branquinha” da qual Quito Fagundes e seus amigos Afonso Manta, Solon Macedo, Irineu Sarno, “Mama na Loba” e Humberto Schetinni eram contumazes consumidores. Contam que, na época em que as ruas estavam com as valas abertas para colocar as tubulações, Quito ao sair cambaleando do bar Sombra da Tarde, ou do Bar e Sorveteria de João Liguori  entrava na vala, que ia dar direto em sua casa.

 Sem as valas ele voltou ao seu habitual meio de transporte após “comer água”: um birimbano (molecote, na gíria local) o levava até em casa em um carrinho de mão!

Já nos tempos da água encanada encontramos Joaquim, velho aguadeiro de mãos calosas, que comentava saudoso e orgulhoso:

“-Já botei muita água na casa de seu Corinto Sarno e de seu Antonio Leto ! “

Eduardo Sarno

11.07.08

Nenhum comentário:

Postar um comentário