13 março 2024

 


ABATE

                                                                                                   Eduardo Sarno- 14.12.02

 

O apelido dele era Abate. Não era alto, nem forte, nem bonito, mas era o líder do nosso grupo de meninos, numa rua chamada da Itália, numa cidade chamada Poções.

Inteligente, bem informado e sempre com um plano na cabeça ele chefiava o nosso grupo. Não tínhamos idade para discutir se a sua liderança era inata ou adquirida, mas confiávamos quando ele organizava uma guerra de badoque, a destruição dos cartazes do cinema ou a matança das galinhas do vizinho.

Era ele quem dirigia as caçadas, quando badocávamos passarinhos  nos matos do sítio de Seu Raimundinho, na barragem em Morrinhos, no açude novo e velho,  pelos lados do hospital, e no sítio de Pirajára, onde havia um grande pé de jabuticaba. Se no inicio usávamos badoques, depois passamos a usar espingarda de socar, daquelas de encher pelo cano. Comprávamos a pólvora e o chumbo na venda de Dahil e de pedaços de corda fazíamos a bucha.

Abate lia muito e nos contava com entusiasmo os mundos que visitava em pensamento e imaginação.

Sabia também nos enganar, como certa vez que enterrou alguns objetos e alegou ter visão de raio X graças a um pó brilhante que tinha jogado no olho. Na dúvida preferimos acreditar.

Ele, como todos nós, sempre gostou da natureza e dos seus bichinhos. Magasapos ( girinos) recolhidos no riacho atrás do quintal que eram postos a ferver em uma lata, besouros com grandes chifres que eram guardados vivos em caixas metálicas bem fechadas, pequenos besouros multicolores colecionados em caixas de fósforos, borboletas que eram espetadas em pedaços de papelão, tanajuras bundudas que eram espetadas em taliscas e passarinhos que eram, evidentemente, badocados.

De quando em vez a sua liderança era questionada, como ocorreu na ocasião em que Luizito Sarno, grande e forte, o desafiou para uma luta. Foi na praça do Obelisco e Abate saiu vencedor.

Certa vez ele pediu-me para entregar uma carta de amor a Rosa Alba, a nossa prima que morava na mesma rua. Dela dizíamos que era tão fofinha que não devia nem ter ossos !

Na saída da Escola Alexandre Porfírio passei na casa de Rosa Alba. Ela estava no quintal, trepada em um pé de manga e eu deixei a carta no chão, indo logo almoçar pois meu pai já iria chegar da loja e era muito pontual à mesa, por exigência de minha mãe.

Já no inicio da tarde o escândalo estava em andamento. Tia  Giusepina Grisi Sarno não gostou da filha ter recebido, uma carta de amor de Abate e, antes de chegar ao autor, passou por mim, já acompanhada de outras tias e minha mãe. Fui interrogado e alegando inocência pedi clemência. A comitiva indignada dirigiu-se a dona Iracema(Sarno) Espinheira, mãe de Abate que, liberalmente tentou acalmar a todos, justificando tudo como “coisas de meninos”. O tempo não guardou os termos da carta, certamente preciosos.

A consideração e o respeito que o próprio pai, Ruy Espinheira, sempre teve por Abate fazia com que ele, aos nossos olhos, fosse tido como uma pessoa sensata, amiga.

A nossa turma ainda existe, cada um é hoje líder de si mesmo e seria difícil imaginar nosso consagrado  poeta, Ruy Alberto Espinheira Filho, o Abate de ontem lutando com Luis Fidelis Sarno, o Luizito, ainda forte mas careca, barba grisalha e aposentado da Odebrecht.

 

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