02 junho 2009

A Sala de Visitas

Situada na parte nobre da casa, com um janelão abrindo para a rua da Itália, a sala de visitas estava sempre limpa e fechada. O toque de classe ficava por conta do assoalho, onde os tacos pretos formavam grandes quadrados concêntricos entre os tacos amarelos. E também do lustre de quatro braços e pingentes de cristal, e as cortinas no janelão e os bandôs em cima das portas, estampadas com grandes rosas, combinando com os sofás.
Nas paredes estavam as fotos emolduradas, grandes e ovais, dos nossos avós paternos Fedele Sarno e Teresina Minervini e maternos Pietro e Ágatarosa Aiello Sangiovanni.
Acima do grande sofá estampado, em foto ampliada e retocada à mão em São Paulo, o casal Corinto e Annina.
Para nós aquelas fotos eram um sinal de que tínhamos um passado, uma descendência. Não havíamos conhecido nossos avós, que ficaram na Itália e já eram falecidos, mas eles estavam presentes não só na parede da sala de visitas de nossa casa como também na de nossos tios, na mesma rua, o que nos dava um sentimento de certeza, segurança e familiaridade.
O mobiliário era simples e clássico, tipo “casa de boneca” com sofá de três lugares, duas poltronas e banquetas. Posteriormente foi acrescido de um enorme móvel envernizado. Era uma das primeiras radiolas da cidade, comprada por meu pai. Na parte superior tinha duas tampas que quando levantadas davam acesso ao rádio e ao toca-discos, que meu pai chamava de “piqueup” , pronunciando “pick-up” como se escreve em inglês.
Na parte de baixo ficavam os compartimentos onde eram acomodados os álbuns com discos de 78 rotações. Os Long Plays (LP) de 33 rotações só surgiram mais tarde, mas o toca disco já comportava esta alteração. A agulha servia para tocar mais de um disco e havia uma haste que permitia colocar vários discos empilhados, que iam caindo e tocando na seqüência.
As visitas, com dia e hora marcada, chegavam pontualmente depois do jantar. A sala iluminada, com as janelas abertas, recebia o casal visitante e todos educadamente conversavam até dez, onze horas da noite. Neste entrementes minha mãe orientava minhas irmãs para servirem bebidas e doces.
Muitas visitas eram retribuições às que meus pais haviam feito, principalmente a médico, juiz ou promotor recém-chegados em Poções. Este era o costume de dar as boas vindas.
O médico Dr. Antonio Carlos e sua esposa D. Lúcia, quando nos visitavam tinham um papo agradável. Ele gostava de contar as piadas de salão da época:
“-Um interiorano foi viajar de avião pela primeira vez, mas se recusou a embarcar quando viu o nome “Panair” no avião. Disse que ali estava escrito “para não ir” e de fato não foi. Coincidentemente o avião caiu. Tendo remarcado a passagem aceitou embarcar porque desta vez estava escrito “Convair”, o que, segundo ele, significava “convém ir”!”
Em dezembro armava-se na sala a grande árvore de Natal. As caixas com as lindas bolas coloridas eram retiradas cuidadosamente do armário e minhas irmãs enfeitavam a árvore, sem faltar a estrela no topo e os presentes no chão.
Caso no balanço anual as nossas malcriações tenham deixado mais saldo do que nosso bom comportamento, havia, segundo a tradição, um pequeno saco de carvão nos esperando! (1)
A sala de visitas também era aberta durante o dia, quando ocasionalmente chegavam os “marreteiros” ou viajantes mascates, vendendo colchas, toalhas, lençóis, cortinas, etc. Chegavam de paletó e gravata, grandes bigodes, sotaque do sul – mas de imigrantes – e grandes malas de couro. Estas eram abertas e tudo se mostrava e se exibia, espalhando pelo sofá, poltronas e cadeiras.
Minha mãe mandava chamar minhas tias e todas vinham olhar, escolher... e pechinchar os belos tecidos. O acerto final era feito com os tios na loja, que davam então a derradeira pechinchada. Estas peças que eram compradas e as que se bordavam em casa eram tão bonitas que o enxoval de minha irmã Aurora ficou exposto na sala de visitas para familiares e amigas.
Mas, havia os riscos. Minha mãe e a cunhada Ana Maria Sangiovanni compraram dois baús com enxoval completo, pagaram e até hoje, pelo que se sabe, nunca receberam...
Era também nesta sala que eram recebidos os namorados das minhas irmãs. Vinham de Salvador Amarílio Mattos, Garibaldo Santana e Manoel Alfredo Mercês, e as recepções eram cerimoniosas, com direito a posterior noivado oficial. Eles ficavam ali namorando, e nós passávamos por lá eventualmente para um rápido papo ou para ouvir o disco compacto de Agostinho dos Santos, que Manuel Alfredo havia trazido.
Nos casamentos era na sala de visitas que minhas irmãs davam a recepção e se reuniam todos os convidados. Foi em uma destas festas que Ruy Espinheira Filho, num desconforto gástrico vomitou em cima de minha mãe, sujando o vestido de gala.
Foi ali também que, anos depois faleceu meu cunhado Garibaldo, na sala já transformada em quarto, depois da reforma da casa. Ele faleceu dormindo, certamente sonhando com os bons fantasmas que ainda habitavam aquela sala de visitas.
(1)Existe uma lenda cristã que fala da velha que recusou pousada aos Reis Magos quando a caminho da visita a Jesus. Arrependida pela sua atitude, ela passou a procurar por eles, em vão. Para compensar então, passou a distribuir presentes e balas para as crianças bem comportadas e carvão para as que não eram 'boazinhas', deixando as prendas dentro de meias.

Eduardo Sarno
Abril/2005