17 março 2024

 

CORINTO  SARNO   E   A  “SERPENTINA”

* crônica poçõense *



 Apesar do conhecido  apreço que Corinto Sarno tinha pelas serpentinas e confetes, nos carnavais no Clube Social União das Classes,  em Poções, a serpentina aqui referida e aspeada é outra.

Trata-se da  “serpentina” usada no processo de aquecimento da água para uso doméstico. O nome obviamente deriva da forma de locomoção das serpentes, fazendo curvas ondulantes.

No Brasil, pela facilidade do uso da mão de obra do escravo, de meninos de recado e de domésticas, o uso da água encanada para a higiene pessoal demorou a ser adotada.

Para as abluções diárias o uso comum era uma armação de ferro encimada por uma bacia, ao lado o pegador para a toalha e o recipiente para o sabão. Embaixo a jarra com a água. A riqueza ou pobreza do artefato era determinada pelas posses da família.

Desde o banho de cuia, de banheira ou de chuveiro de lata, a água, quente ou fria, era sempre levada em um balde e despejada no recipiente adequado.

Na Europa, segundo Caroline Lucas, no interessante trabalho “O Mundo Doméstico” , só na década de 1880 a água encanada começou a ser instalada nas casas de classe média. E “no final do século introduziu-se a água quente encanada, aquecida por fogão da cozinha ou em caldeiras separadas”.

Naquela época em Poções – falamos da primeira metade do século XX – usava-se para as encanações canos de chumbo. Lembro que quando havia restos de obras procuráva-mos pedaços de chumbo para derreter e brincar. Tal material, por não resistir ao calor,  não era apropriado para fazer a “serpentina”.

Só por volta de 1950, quando já havia no mercado o tubo galvanizado, foi que Corinto, juntamente com o cunhado Chico Sangiovanni, instalaram a “serpentina” no fogão principal da casa, na cozinha junto ao banheiro.

Os tubos galvanizados só tinham roscas nas pontas, e as adicionais eram feitas com uma tarraxa, em um delicado trabalho de torno manual. Por não existir ainda o “teflon” , usava-se fiapos de sisal com tinta para a ação de veda rosca.

O fogão, de ferro fundido, era apropriado para esta função de aquecimento de água. Usava-se lenha ou carvão, e a múltipla funcionalidade incluía, além da água, o aquecimento do forno, das panelas, e da chapa, que mantinha aquecida a chaleira ou a comida dos retardatários por um bom tempo.

A “serpentina” tinha um funcionamento permanente e barato. Acima do fogão, um reservatório, conjugado com o banheiro, nos deixava abastecidos de água quente ou morna por um longo período. O banheiro, todo ladrilhado e com banheira, era uma novidade na cidade. Conta o meu irmão Pedro que algumas visitas pediam para ver o banheiro de “seu” Corinto. Não pela suntuosidade, certamente, mas pela novidade e conforto.

 Eduardo Sarno

Maio/2012

 

A MACARRONADA

* crônicas poçõenses *

 


Minha mãe, ao voltar da missa dominical, dedicava-se à tarefa da preparação da macarronada, com a ajuda de Joaninha, nossa empregada de muitos anos.

A farinha de trigo era de boa qualidade, mas nem sempre foi assim. Na década de 30, a farinha demorava tanto a vir de Salvador para Poções, que invariavelmente chegava estragada.

A massa, preparada com ovos do quintal, era primeiramente aberta na máquina manual, marca “Rapid”, vinda da Itália, mas provavelmente de fabricação inglesa, e que uso até hoje. As tiras eram espalhadas sobre a  mesa de pedra da cozinha, e depois passada no cilindro do “spaghetti”. O  outro cilindro era para o “talharim”.

A grande panela de alumínio já estava sobre o fogão a lenha, aquecendo a água.

O “sugo” era feito de tomates previamente cozidos, aos quais se juntava as “polpetas” (do latim “pulpa”)  ou então bifes de carne macia, enrolados e espetados em um palito.

O uso de tomates e verduras por parte dos italianos em Poções, Jequié e Jaguaquara criou uma demanda, que foi suprida  tanto pelos próprios italianos que se dedicaram à agricultura, como pelos agricultores locais.

A travessa,  antiga e enorme, de porcelana,  já aguardava sobre a mesa da copa ou, eventualmente, da sala. A fome rondava a casa, e os comensais não se afastavam, prontos para “mangiare”.

Meu pai não se sentava à cabeceira da mesa. Tinha o costume e a preferência de sentar-se ao lado da cabeceira, por ser um lugar mais resguardado e ter a visão da copa e do quintal, com a parreira e o pé de laranja lima. Quando havia convidados, que lhe reservavam a cabeceira da mesa ocorria sempre a necessidade desta explicação.

O primeiro prato a ser servido era o do meu pai, e em seguida dos filhos. Minha mãe revelava prazer imenso nesta tarefa de alimentar a ninhada.

Meus pais, e eventualmente nós, usávamos a colher para auxiliar o garfo a enrolar o 'spaghetti'. Era um antigo costume italiano.

O horário da refeição era sagrado, ninguém podia se atrasar. Nem mesmo meu pai. Quando isso raramente ocorria, era repreendido por minha mãe. Ele respondia de maneira jocosa  e sorrindo: “- Dona Nina, Dona Nina...!!”

Normalmente o consumo eram dois pratos “per capita". Nas ocasiões festivas bebia-se vinho tinto frisante.

A tarde  era dedicada à digestão. Eu sentava sózinho na varanda e ficava observando a rua, na tarde dominical, semi-deserta. Quando passava um transeunte, eu me perguntava mentalmente, com um leve sentimento de culpa,  se ele estaria tão bem alimentado como eu.

Eduardo Sarno

2019