16 março 2024

 

OS    PALAVRÕES E OS ITALIANOS

 * crônicas poçõenses *

 


          Minha tia Ana Maria Sangiovanni entrou correndo esbaforida em nossa  casa e  foi encontrar minha mãe na cozinha abrindo massa para macarrão, pois era quinta feira:

- Dona Annina, corre que estão xingando Dr. Ruy Espinheira de “bacharel”, pelo alto-falante.

Era Ângelo Neto fazendo suas perorações políticas para o povo da cidade e, sem querer, assustando  dona Ana.

Chegada  em Poções a pouco tempo da Itália, ela ainda não estava familiarizada com todas  palavras, carecendo portanto da explicação que minha mãe lhe deu, que “bacharel” era o mesmo que advogado.

Por acaso ou de propósito estas peças lingüísticas eram sempre pregadas aos recém chegados. Foi o que ocorreu com Antônio Libonati que, tendo sido recebido em Salvador pelos primos Pedro, Élio e Benito, foi almoçar na casa de Vicente Sarno, no Politeama de Cima, 22. Ensinaram para ele que açucareiro em português era “pinico”, e ele não vacilou em pedir ao tio que passasse o “pinico”!...

Mais precavida, tia Lelinha Pithon Sarno , esposa de Tio Vicente, achou por bem avisar logo a tia Ana assim que ela chegou a Salvador : “- Se perguntarem como se chama  “bolsa” em italiano não responda !” A advertência foi oportuna porque assim que conheceu tia Ana, Juracy de Fidélis insistiu para que ela dissesse como se chama “bolsa” em italiano. Minha tia, sob o olhar preocupado de tia Lelinha aprendeu a lição e se recusou a dizer “bolsetta”.

Os nossos tios eram práticos em um palavrão, e o carro-chefe era cazzu , que significa membro viril (Rohlfs), o vulgar caralho ou pica, com a variante  capo de cazzu, ou seja, cabeça de pica. Mas, se nós ousássemos dize-lo levávamos logo um tapa. Eles falavam com tanta naturalidade e freqüência que ficava difícil aceitar que nós também não o pudéssemos fazer.

Mas, contraditoriamente, o ambiente familiar era muito respeitoso e mesmo uma simples  porra  era objeto de recriminação e tapa na boca. Bosta  e merda também nem pensar, aliás, pensar e fazer podia, o crime era dizer.

Segundo uma versão divulgada por Irineu de Valentim Sarno, numa tarde nublada Américo Libonati ia descendo a Rua da Itália e já estava  no meio da praça, indo para a loja de ferragens quando cruzou com José Schettini e, sorridente, comentou :

“Giuseppe, guarda come stai lampando!”( “José, veja como está relampejando!”)

Como o José não estava no seu dia de bom humor, respondeu :

“Lampando sta il culo tuo, cazzu” ( “Relampejando teu cú, caralho.”)

Também era muito usado a expressão fessa,  (besta), com as variantes faccia de fessa ( cara de besta), fessa de mammata  ( besta da mãe) ou  fessa de ziata ( besta da tia) e esses eram ditos por tios e tias. A origem da palavra está no latim “fissus”, no sentido de vontade ou sentimentos divididos.  No dialeto trequinês “fezza, feminino feccia, que significa vulgar, desprezível. No dialeto siciliano “fissa” é o órgão genital feminino, entre outras acepções. A aplicação é lógica, pois tal órgão tem uma fissura, abertura.

Daí se referirem a uma coisa boba como “fessaria

  Quando queriam mandar alguém se danar a expressão usada era  va strafuta , também de uso familiar. Se em geral os xingamentos são difíceis de serem localizadas em suas origens, em italiano é mais complicado, porque são palavras ditas e nunca escritas, sendo que muitas delas derivam do dialeto trequinês ou mormanolo. Assim, por aproximação, temos , do dialeto trequinês,  vastà que significa “chega, basta” e frustafo significando “vá embora”.Segundo Rohlfs, 'strafuná' é distanciar-se, dispersar.O que poderia ser traduzido pelo nosso popular 'se pique'.

 As blasfêmias eram pouco ouvidas, mas a porca  miséria  tinha os seus usuários, e o seu sentido era reclamar da vida. Meu pai tinha predileção pelo uso de “borrabota”, que não chegava propriamente a ser um palavrão, mas a partir do significado de “mau engraxate” designa indivíduo reles, desprezível. Outra expressão que sempre usava era “capadócio”,  que apesar de suas origens greco-latinas, pois se refere a uma província turca da Ásia Menor, não tem em italiano a conotação que recebe em português : indivíduo acanalhado, impostor, trapaceiro, parlapatão.

Capotosta, também do dialeto trequinês,  sempre teve largo uso, e significa  cabeça dura, teimoso, obstinado.  É uma palavra formada de  capo, cabeça  e tosta , obstinada.

Os recém chegados da Itália também usavam o termo “brutto “(feio, desonesto, tolo) para se referir a pessoas  que fossem  indelicadas ou praticassem ações que demonstrassem ausência de sentimento.

“Abestalhado” ou “abestado”  eram formas aceitas para o uso doméstico para designar principalmente os meninos que, no conceito dos adultos, fizessem  alguma  besteira ou “bestagem”, como também era usado. Daí  o uso que meus tios faziam com freqüência do termo “bestalhão” que, na pronúncia deles saia “ bestalhon”.

Minha mãe tinha predileção de chamar minha irmã Noemia de “pamonha", quando ela teimava em ler revistas de foto-novela durante os horários não permitidos. Derivado do tupi  pamu’ñ ã”, significa, além de bolo de milho verde, pessoa mole, preguiçosa.

 Certa vez estávamos na grande mesa da copa almoçando, quando Betânia, uma meninota que tinha vindo da roça para ajudar nos serviços de casa, olhou pela porta lateral que dava para a rua e disse à minha mãe que ali tinha uma “burrega”. Como minha mãe não sabia o que era não deu atenção. Minutos depois, ao passar pela porta ela viu uma cabrita comendo as suas plantas. Aborrecida, chamou Betânia de burrega e mandou que ela tirasse a cabrita de lá. A partir deste dia passou a usar o termo para designar pessoas que ela considerava burras.

Outro neologismo que surgiu em circunstâncias bem definidas foi na ocasião em que algum órgão do Governo providenciou o peixamento do açude local com uma espécie denominada “Tilapia Melanopleura”, cuja grande façanha era se alimentar de detritos lançados às águas. A molecada não deixou por menos e passou a usar o termo “xilaia”  nos seus xingamentos mútuos, com acepção indefinida mas certamente pejorativa.

E assim a cultura do palavrão ia se difundindo e mesclando com as práticas  locais e quando começávamos a ir para a Escola Alexandre Porfírio, estávamos perto de receber o diploma de expressões chulas...e bilíngüe !

Os palavrões mais estranhos eram aqueles que na época não sabíamos o significado, e os principais era “xibungo” , pederasta passivo, e “sacana”, derivado do árabe “açaccó”, que significa  “aguadeiro” e que é usado para designar o canalha, patife, entre outros. Mas, como funcionavam, fazendo com que as pessoas ficassem  retadas, o uso era comum. Mas as palavras “retado”( estar zangado) e “porrêta” (bom, excelente) também não eram usadas socialmente.

Os doidos, quando eram provocados pelos moleques eram catedráticos de palavrão. A principal resposta, evidentemente, era que o apelido dele eqüivalia à “buceta”da mãe de quem o chamava. Mas isso não intimidava os moleques, que queriam ouvir mais. E lá vinha “filho da puta”, que na verdade saia com variantes por causa da pronúncia: “fi da puta” ou “féla da puta”, pois a pressa e a ignorância não permite classicismo.

 Para nós a novidade era que também as doidas sabiam um bom repertório de palavrões e era muito mais emocionante ouvi-las gritar “vá tomar no cú, seus safados”, do que os doidos.

Nas paredes da Escola o que mais se escrevia era “pica” e “buceta”, às vezes com ilustrações adequadas ao texto. “Xibiu”, que nos garimpos mineiros significa diamante pequeno, em Poções era sinônimo de “buceta”, que era representada por um triângulo. O mesmo acontecia com a palavra “binga”, que em lugares mais discretos significa isqueiro, mas aqui é “pênis” mesmo, e chamar alguém de “tampa de binga”  deixava claro, de forma criativa, o significado.

Uma outra expressão que também se adiantava numa explicação mais completa era “filho de puta com soldado raso, ofendendo os brios das Forças Armadas.

Às vezes ainda não tínhamos nem a percepção exata do significado do palavrão, mas a ênfase com que era dito já bastava para motivar uma briga. Era o caso de “viado”, (com “i”)  cuja compreensão não era completa para todos nós.

Xingar-nos mutuamente de “corno” não fazia o menor sentido, mas, apesar disso era usado. Os mais sabidos já faziam uma ligação direta com os pais da pessoa a ser ofendida, tornando o sentido mais lógico.

“Vai te fuder”, ou “estou fudido” era de um caráter tão dúbio que nos confundia. Já compreendíamos que “fuder” era uma coisa boa, e como se podia querer mal a alguém mandando ele se “fuder” ? Como poderia alguém se “fuder” sozinho? E por que estar “fudido” era estar em uma situação ruim?

Alguém tinha dito que “porra” significava esperma, e não fazia sentido para nós que alguém gritasse “esperma” quando estivesse zangado.

As garotas, em absoluto não se permitiam dizer a mais simples “porra”, e quando ouviam dos meninos alguns palavrões diziam “- Queta, ozado” e no recinto sagrado do lar a chamada boca suja era lavada no tapa. Restava, progressivamente, a escola, a rua e o bordel. Vitalina, dona da casa de raparigas  mais freqüentada tinha uma fala rendilhada de palavrões.

Mesmo com a circulação nos bordéis não havia novos palavrões. O rádio não se prestava para isso e a televisão não existia. Só com a ida das primeiras levas de ginasianos, para Jequié, no Colégio do padre Spínola – aquele que pegava nos peitinhos das alunas fardadas dizendo: “-Escudinho novo, hem ?” ou para Salvador, no Vieira, Salesiano e Maristas é que os horizontes lingüisticos se ampliavam. Já se sabiam de nomes eruditos como “baitola, pederasta” ou “homossexual”. Até de “franchona” já se comentava, sem falar no “sessenta e nove”, mas aí já é uma outra história, da prática e não da fala. Ou da prática do falo.

Foi justamente em Jequié, em 1957, quando Pietro Pasquale Sangiovanni, o conhecido Pepone foi fazer o exame de admissão que lhe perguntaram se ele já sabia  bater punheta”. Inocente, respondeu que não e então lhe ensinaram  um movimento de destreza com os dedos indicadores e polegares alternando-se, num movimento sem fim,  e disseram que isso era bater punheta. Na sala de aula, depois de feita a prova, contente, Pepone querendo se enturmar perguntou ao professor se ele já sabia bater punheta. Sem perceber o olhar de incredulidade do professor ele, movimentando os referidos dedos disse sorrindo: “- Eu já aprendi, professor, olhe só!”

Eduardo Sarno

Outubro.98

 

OS  SAPATOS

* crônicas poçõenses *

 Para nós, crianças e filhos de italianos em Poções, a lembrança do calçado usual  era a alpercata, de sola de pneu, tiras de couro e pequena fivela lateral. De fabricação local, era bastante resistente e deixava nos pés as marcas do uso, em forma de  sujeira, nas partes da pele onde as tiras de couro não cobriam.

Quando se  começava a freqüentar a Escola Alexandre Porfírio , então o uso era de um sapato fechado, preto, de cadarço, e a marca mais comum era Clark, e a Vulcabrás também era muito apreciada. Havia um modelo da Clark, vendido na Loja Sarno, dos meus tios, que era o “Scattamaccio”. Este nome me dava a idéia de algo parecido com um tanque de guerra. Na verdade, soube depois, quer dizer algo como saltador, leve, como se o sapato fosse de molas !

Também destas marcas eram os sapatos usados pelos nossos tios. A cor predominante era sempre o preto, e todos eles de cadarço. Muito raro os marrons e mais raro ainda os que combinavam o marrom com branco. Estes foram usados em décadas passadas, anteriores a 1950, e nós conhecíamos pelas fotografias.

No inverno os sapatos eram protegidos por galochas, que eram moldes de borracha fina, que se calçava por cima dos sapatos, tornando-os impermeáveis.

 Mas os pés brancos dos nossos tios nunca víamos. Mesmo em casa eles usavam um chinelo que cobria a parte posterior do pé, só se vislumbrando o calcanhar. Os mais acomodados usavam um sapato velho, amassado na parte de trás, como se fossem  chinelas.

Esta não visão dos pés e a excessiva proteção contrastava com os pés sempre à mostra da maioria do povo pobre da cidade , da caatinga e da mata. Eles usavam sempre uma chinela de couro, tipo mete dedo. E lá estavam aqueles pés calejados, rachados, andados.

Aos sábados, dia de feira, lá vinham eles. Os catingueiros ou mateiros mais ricos, ou ligados ao trato do gado usavam botas de couro cru, de fabricação regional.

Para ir até à fazenda , fazer uso das montarias, ou ir à caça,  meus tios usavam coturnos e borzeguins. Eram botas assemelhadas, de couro, bem amarradas na frente, com o cadarço se entrelaçando. Uma delas tinha uma grande perneira, independente do coturno, que se amarrava em separado.

O coturno trás o seu nome do grego, significando um calçado usado pelas mulheres. Também os atores trágicos os usavam, para se tornarem mais altos. Ainda é usual a expressão “fulano é de alto coturno” para significar alguém socialmente importante .

O borzeguim, por seu lado, tira o seu nome do antigo francês broissequin , e ao que consta usado por atores da comédia.

Para minha primeira comunhão ganhei um sapato fino, preto, de verniz. Bonito, brilhante, mas não resistiu a mais alguns domingos: o verniz era quebradiço e não havia como recuperar. Mas  não era comum esta cor para esta ocasião,  a usual era branca, combinando com o terno.

Anexo aos sapatos estavam os apetrechos para limpeza, que eram as pastas preta e marrom, a escova e a flanela. Ocasionalmente os adultos e adolescentes engraxavam na rua, sentados comodamente nas cadeiras dos engraxates. Mas como eram muitos sapatos e o uso era mantê-los limpos e brilhantes, aos sábados normalmente fazíamos esta tarefa em casa. Outro complemento indispensável era a calçadeira, de metal ou de chifre de boi. A solidez dos sapatos e o cadarço apertado não permitiam uma entrada do pé sem uma ajuda. Também a meia era indispensável, e ocasionalmente o talco.

Por ser todo em couro o sapato tinha durabilidade e as partes podiam ser substituídas. Para esta tarefa artesanal havia os bons sapateiros no Beco dos Artistas, perto da Loja Sarno. O mais comum era fazer a meia-sola e trocar o salto, masculino, ou capa-fixa, feminino. Para evitar o desgaste excessivo do salto alguns usavam pequenas chapas de metal nos lugares onde o atrito do salto era maior.

Daí a expressão usual de “fazer meia-sola” , ou seja, fazer algo voluntariamente  pela metade.

Andar de pés descalços era impensável. Temia-se os bichos e vermes de toda espécie. E o famoso bicho-do-pé  não era uma invenção, existia de verdade, e dava uma coceirinha gostosa e traiçoeira. A frieira também era uma possibilidade próxima que evitávamos, ao não pisar no molhado.

A partir da década de 50 foi surgindo uma grande variedade de calçados esportivos. Um dos primeiros foi a conga, (a marca se confunde com o objeto) de solado de corda e corpo de lona. A corda acumulava o suor, que combatíamos com o talco e no final o calçado ficava todo enlameado por dentro. A alternativa era lavar.

 Com este modelo já se iniciava o sistema use e jogue fora, porque não havia recuperação. A marca em voga era “Alpargatas”. Em seguida veio a conga de solado de plástico e também a basqueteira, de cano mais alto e cadarço, adaptado para esporte. Por esta época surgem também os sapatos esportes sem cadarço, “mocassins” , normalmente marrons, o que vem aliviar os nossos pés.

Os tios continuavam com os calçados tradicionais, e só os primos aderiam a estas novidades. Mas quando chegou a sandália japonesa, o meu primo Fidelão, de tio Emilio, espantou a todos exibindo os grandes pés brancos pùblicamente!

Os sapatos femininos, com  suas variações próprias seguiam estas mudanças. As tias mais idosas mantinham a tradição do sapato preto fechado, com salto, e as mais novas usavam  sapatos de salto, alguns com cores, e uma pequena abertura na frente. As adolescentes usavam também sandálias fechadas de couro e, as mais novas, sapato tipo “boneca”. Na sequencia é que foram surgindo as sandálias de couro tipo mete-dedo, com várias ornamentações. Minha irmã Aurora foi quem primeiro usou em Poções, para espanto de umas e encanto de outras.

 



Eduardo Sarno

Nov/ 03

 

OS  DOIDOS

* crônicas poçõenses *

 


Eles estavam nas ruas e nas nossas cabeças. Quando ouvíamos a molecada gritar: “Ôôô Três Casaco !!!” corríamos para ver. Lá estava ele, barbudo ,já de uma certa idade, carregando um saco cheio de coisas, correndo atrás dos moleques e jogando pedras. Ele costumava ficar na porta da casa do dr. Agripino Borges e chegou a dar um tapa em Adilson Santos. Era dos brabos. Mas tinha também os mansos: Isaulino era um deles. Magro, segurando as calças sujas para não cair, andava, ciscava com uma perna, catava um bago de cigarro no chão, dava uma corridinha, parava e ficava falando só. Quando o chamavam, resmungava e mal levantava a cabeça.

Para nós, atentar os doidos era um misto de brincadeira ingrata e perigosa. Não nos deixava satisfeitos. Havia ali algo que nosso entendimento infantil não alcançava. O máximo que ouvíamos os adultos comentarem eram sentimentos de pena: “coitados !!!”. Mas isso não era suficiente. Ficávamos a pensar de onde eles vinham, porque se tornaram assim e o que eram, finalmente. Às vezes alguém comentava que um doido havia sido um homem rico, fazendeiro ou negociante, ou que uma doida teria sido uma mulher muito bonita, que esteve quase noiva. Sentíamos o peso da fatalidade como o de uma rocha caindo em cima de uma formiga, pois ali estava o pobre coitado, na rua, sem absolutamente nada. O contraste conosco era total. Tínhamos de tudo e a comparação a que éramos submetidos quando víamos um doido era muito forte.

Joaninha, a empregada lá de casa, assim certamente como todas as outras de Poções, não perdia a oportunidade de recorrer às ameaças de chamar um doido para nos pegar em caso de desobediência ou malcriação. Os preferidos eram Buqueirão, um mulato barbudo, maltrapilho, feroz e que jogava pedra, e o outro era Medonho, olhos remelentos e uma cabeça enorme, que ele batia contra a parede.

A nossa ignorância fazia com que ficássemos aterrorizados, imaginando a obediência daqueles doidos aos desejos das empregadas, a vinda deles fisicamente durante o dia e metafisicamente durante o sono, nos atormentando.

Mas, com alguns doidos havia uma certa convivência ou aproximação. Lope, por exemplo, doido manso, contava as estrelas e quando errava recomeçava. Ao nos ver pedia “torresmim” para comer. Maria Putuquinha tinha até um trabalho, botava água de ganho nas casas, pois não existia ainda a água encanada de Morrinhos. Já com o Carrim, que era cego, a malvadeza da molecada era orientar erradamente e fazer ele tropeçar ou cair em um buraco. Quando davam comida para ele e não tinha carne, perguntava: “-Ô Sá Jô cadê a mastigadura ?” Quando a molecada deu um pau sujo de bosta para ele pegar acusou logo: tem um cagado por aqui !.

Os doidos tinham oscilações de humor e comportamento, e dizia-se que a lua cheia tinha a ver com isso. Gatinha era pequena, branquela, e quando braba deu um murro na barriga de Vone Macedo, que estava na porta da farmácia de Olimpio Rolim. Contudo, os filhos de comadre Dozinha Fagundes podiam xingar de Gatinha que ele não se incomodava. Pedia pedaços de sabão nas casas e suspendia a saia, para alegria da molecada.

Já Pêga, negra gorda, feia e suja, era sempre braba. O povo raspava a cabeça dela por causa dos piolhos.

Havia os que, se não eram doidos eram tipos estranhos. Zupero era um deles. Índio, caboclo das matas, onde morava, não saia de dia e só a noitinha é que passava nas casas. Lenço amarrado na cabeça, bermuda desfiada, brincos e colares Zupero trazia para a nossa curiosidade um novo elemento: o efeminado. Cantava versos do terno de Reis: “Ai  duri duri ai, ai ai duri duri ai”,   e dizia que na Sexta Feira Santa passava por dentro de um espelho.

O outro tipo estranho era Mazinho, filho de Dona Massú, que era lavadeira e fazia acarajé. O pai era seu Hermenegildo, guarda noturno, que o povo chamava de “Miligildo” e tinha um Reis de Boi onde, certa ocasião, pregou um rabo de verdade no “boi” que fedeu tanto que o povo não quis receber o Reis nas casas. Negro, alto, de andar rebolado, Mazinho era o outro efeminado que nos intrigava. Não sabíamos nem porque nem para que servia um efeminado. Achávamos que era só mania de querer imitar as mulheres.

Poções sempre foi pequeno e com três passadas os doidos iam da Rua da Itália à Rua São José e assim conheciam e eram conhecidos de toda a cidade que, tirante a molecada, não os hostilizava. Mas tinha um que só fazia ponto na Praça Coronel Magalhães. Era Jipe. Na verdade era um andarilho que saia de Jequié e ia até Conquista, pela Rio- Bahia, sem asfalto na época. Trazia pendurado no pescoço um volante e a tiracolo as buzinas e os faróis. Amarrado atrás um bagageiro pequeno, com os pertences de viagem. Os sapatos eram os pneus e as pessoas que o cercavam para ver a novidade davam dinheiro, que era para comprar a “gasolina”: café com leite e pão no Bar do João Liguori.

 São lembranças de seres provisórios, sem passado e sem futuro, que só serviram para povoar a nossa imaginação. Eles ficaram no passado, mas nós mantemos incrustados em algum lugar das nossas mentes aqueles olhares perdidos que olhavam mas não viam , os olhares dos doidos de Poções.

Eduardo Sarno

Jul/97

 

O PADRE HONORATO  NASCIMENTO  DE  ANDRADE 

* crônicas poçõenses *

 É uma dessas personagens que petrifica e incrusta-se na historia das pessoas e dos lugares. Magro, gestos rápidos, nariz afilado e sempre com uma batina preta puída na gola e nos punhos. Cobrindo a tonsura o permanente barrete. Dele diz-se mais coisa do que ele realmente é. Surdo, tem o privilégio de só responder às perguntas que lhe interessam. Aumenta e abaixa o volume dos fones auriculares através de um controle que traz no peito, em um bolso interno da batina. Natural de Jaguaquara, raramente era visitado pelos parentes.

Dizem que ele fala com a voz meio forçada, encostando a ponta da língua no céu da boca e arrastando os “erres” para poder imitar o sotaque dos italianos, de quem muito gostava.

Dizem que ele só começa a missa quando seu Corinto Sarno chega. Outros explicam que, como seu Corinto é pontual, a hora que ele chega é o sinal certo para o Padre  iniciar a Missa.

Dizem que tem uma fazenda na Mata que vale milhões, mas que é muito sovina e faz questão de não falar dela.

Dizem que gosta muito de beber, quando lhe oferecem um guaraná, pergunta discretamente, entortando a boca, se não tem um uísquizinho.

Dizem que é esnobe e refinado, e que gosta de ter em casa  do bom e do melhor, principalmente mobiliário e roupas de cama e mesa.

Dizem que é muito vaidoso e que  tudo fez para ter o título de Monsenhor, do qual faz questão de usar tudo que tem direito: meias carmins, cinta vermelha, apliques nos botões e penacho vermelho no barrete. Recebeu o título por ocasião das suas bodas de prata de ordenação sacerdotal, no pontificado de João XXIII.

Dizem que não tem muito senso pratico. Quando teve um Jeep e estava aprendendo a dirigir no campo de aviação, o instrutor mandou que pisasse no freio.  Ele abaixando-se apontou para o pedal e perguntou:-  É este?  O carro só foi parar no meio dos pés de guabiraba.

Dizem que é muito usurário e comodista e que quando aparece um hospede para sua casa pede para alguém levar para  a casa de Seu Corinto.

A verdade é que,  apesar do padre Honorato, a comunidade poçõense conseguiu manter a fé.

Na sua prática, assistia aos pobres, fazia a desobriga pelas matas e caatingas e sempre se juntou aos poderosos do lugar, que nunca se negaram a fazer o que ele solicitava. Aos moleques e crianças que encontrava, nunca deixou de puxar as orelhas e apertar as bochechas. Quando era filha de algum conhecido, além da bochechada dizia, com sua pronúncia peculiar: “Olha a menina bonita de Leto. Como está seu pai?” E seguia adiante sem esperar resposta, porque não ouvia mesmo.

Alguns acreditam que nem ele mesmo entendia os seus longos sermões, monótonos e repetitivos. E o latim que ele lia, rápido demais, não correspondia ao que estava escrito.

E mais coisas se dizem do venerando Monsenhor. Mas isto não conto eu, que o faça os rapazes do Tiro de Guerra.

Houve um movimento modernista para depor o padre Honorato. Conseguiram. Mas não sei se foram justos. Afinal, mesmo anacrônico ele era um patrimônio local e se a comunidade avançou deveria tê-lo assimilado e não  afastado.

Hoje o Monsenhor é falecido. Se subiu aos Céus e está sentado à direita de Deus Todo Poderoso o fez no dia da Festa do Divino Espirito Santo, padroeiro de Poções, de quem sempre foi um pregador fiel.

 Eduardo Sarno

Jun/97


 

O OBELISCO

* crônicas poçõenses *

 A nossa geração tem esta marca indelével de apego sentimental à cidadezinha do interior que albergou nossa infância e juventude.

Lembramos o nosso saudoso obelisco, de base hexagonal,


que afinava à medida que subia, construído por Paulo Barbosa do Amaral e  inaugurado a 10 de novembro de 1941, na Praça da Bandeira, na gestão do Dr. Peixoto.

O conjunto do obelisco era composto de quatro postes com luminárias e quatro bancos de granito, sem encosto, com um largo passeio em volta. Na praça, as casuarinas ,plantas originárias da Austrália, lembrando árvores de Natal simétricas, lindas no seu verde fosco, contrapondo com o céu azul e as nuvens multiformes e alvas. Seus raminhos verdes cilíndricos, que substituem as folhas, divididos em pequenas secções, serviam para uma brincadeira inocente: partido em dois, e depois perfeitamente encaixado, tratava-se de adivinhar qual o gomo que havia sido secionado.

Velhuscas, nodosas, as casuarinas ainda estão lá. Quando passamos perto o som do vento nos galhos parece dizer: “ - Olha quem está aí  ! lembram daquele menino ?”

Quem não está mais é o obelisco. Ferrugem ? descaso ? mas era um obelisco importante. Além das casuarinas  ele era cercado pela casa de Luis Sarno, onde antes funcionou o Dopolavoro Umberto Maddalena, a Igreja dos Crentes (como a chamávamos), do pastor Alcides “Batatinha” (como o chamávamos), a Escola Alexandre Porfírio, a casa de Argemiro Pinheiro, a dos Mascarenhas, a de Juvenal Oliveira, a de Ioiô Macedo, a de Brás Labanca, pela antiga sede do Clube Social, a de Dr. Trindade, a casa de Américo Libonati e a da Escola da Cooperativa da professora Lusmar e pela atual Prefeitura, que já foi clube e jardim de infância, onde cursei.

Era lá no obelisco , nos seus degrauzinhos, que as crianças sentavam em grupo para tirar fotos, que nas tardes de domingo Antonio Leto passeava com Dalva e suas futuras cunhadas Dolores e Alina, que Félix Magalhães e Maita Curvelo, namorados, pensavam que tinham por única testemunha dos seus amores o solitário obelisco, sem saber que a meninada olhava tudo de longe.

Era lá que o Dr. Fernando Costa realizava os atos cívicos, quando da sua gestão na Prefeitura, perfilando a Filarmônica  de Mestre Nadinho e o Tiro de Guerra. Era no obelisco que, na hora do “baba” sentavam os que não estavam jogando.

Nele , no tempo de Getúlio Vargas,  eram colados os cartazes convocando os reservistas para defender a Pátria e o povo para aprender o ABC. Era lá que acontecia tanta coisa que eu nem sei contar...

Com o tempo o obelisco ficou esclerosado, descamado, feio e ninguém cuidou dele. Parecia que diziam: “-Cai logo, peste !” Mas ele não caiu, foi demolido.

No seu lugar foi construído um lindo jardim florido e bem cuidado.

Sem desmerecer as flores acho que jogamos fora um obelisco cheinho de lembranças e emoções.

 Eduardo Sarno

Fev/98