16 março 2024

 

OS  SAPATOS

* crônicas poçõenses *

 Para nós, crianças e filhos de italianos em Poções, a lembrança do calçado usual  era a alpercata, de sola de pneu, tiras de couro e pequena fivela lateral. De fabricação local, era bastante resistente e deixava nos pés as marcas do uso, em forma de  sujeira, nas partes da pele onde as tiras de couro não cobriam.

Quando se  começava a freqüentar a Escola Alexandre Porfírio , então o uso era de um sapato fechado, preto, de cadarço, e a marca mais comum era Clark, e a Vulcabrás também era muito apreciada. Havia um modelo da Clark, vendido na Loja Sarno, dos meus tios, que era o “Scattamaccio”. Este nome me dava a idéia de algo parecido com um tanque de guerra. Na verdade, soube depois, quer dizer algo como saltador, leve, como se o sapato fosse de molas !

Também destas marcas eram os sapatos usados pelos nossos tios. A cor predominante era sempre o preto, e todos eles de cadarço. Muito raro os marrons e mais raro ainda os que combinavam o marrom com branco. Estes foram usados em décadas passadas, anteriores a 1950, e nós conhecíamos pelas fotografias.

No inverno os sapatos eram protegidos por galochas, que eram moldes de borracha fina, que se calçava por cima dos sapatos, tornando-os impermeáveis.

 Mas os pés brancos dos nossos tios nunca víamos. Mesmo em casa eles usavam um chinelo que cobria a parte posterior do pé, só se vislumbrando o calcanhar. Os mais acomodados usavam um sapato velho, amassado na parte de trás, como se fossem  chinelas.

Esta não visão dos pés e a excessiva proteção contrastava com os pés sempre à mostra da maioria do povo pobre da cidade , da caatinga e da mata. Eles usavam sempre uma chinela de couro, tipo mete dedo. E lá estavam aqueles pés calejados, rachados, andados.

Aos sábados, dia de feira, lá vinham eles. Os catingueiros ou mateiros mais ricos, ou ligados ao trato do gado usavam botas de couro cru, de fabricação regional.

Para ir até à fazenda , fazer uso das montarias, ou ir à caça,  meus tios usavam coturnos e borzeguins. Eram botas assemelhadas, de couro, bem amarradas na frente, com o cadarço se entrelaçando. Uma delas tinha uma grande perneira, independente do coturno, que se amarrava em separado.

O coturno trás o seu nome do grego, significando um calçado usado pelas mulheres. Também os atores trágicos os usavam, para se tornarem mais altos. Ainda é usual a expressão “fulano é de alto coturno” para significar alguém socialmente importante .

O borzeguim, por seu lado, tira o seu nome do antigo francês broissequin , e ao que consta usado por atores da comédia.

Para minha primeira comunhão ganhei um sapato fino, preto, de verniz. Bonito, brilhante, mas não resistiu a mais alguns domingos: o verniz era quebradiço e não havia como recuperar. Mas  não era comum esta cor para esta ocasião,  a usual era branca, combinando com o terno.

Anexo aos sapatos estavam os apetrechos para limpeza, que eram as pastas preta e marrom, a escova e a flanela. Ocasionalmente os adultos e adolescentes engraxavam na rua, sentados comodamente nas cadeiras dos engraxates. Mas como eram muitos sapatos e o uso era mantê-los limpos e brilhantes, aos sábados normalmente fazíamos esta tarefa em casa. Outro complemento indispensável era a calçadeira, de metal ou de chifre de boi. A solidez dos sapatos e o cadarço apertado não permitiam uma entrada do pé sem uma ajuda. Também a meia era indispensável, e ocasionalmente o talco.

Por ser todo em couro o sapato tinha durabilidade e as partes podiam ser substituídas. Para esta tarefa artesanal havia os bons sapateiros no Beco dos Artistas, perto da Loja Sarno. O mais comum era fazer a meia-sola e trocar o salto, masculino, ou capa-fixa, feminino. Para evitar o desgaste excessivo do salto alguns usavam pequenas chapas de metal nos lugares onde o atrito do salto era maior.

Daí a expressão usual de “fazer meia-sola” , ou seja, fazer algo voluntariamente  pela metade.

Andar de pés descalços era impensável. Temia-se os bichos e vermes de toda espécie. E o famoso bicho-do-pé  não era uma invenção, existia de verdade, e dava uma coceirinha gostosa e traiçoeira. A frieira também era uma possibilidade próxima que evitávamos, ao não pisar no molhado.

A partir da década de 50 foi surgindo uma grande variedade de calçados esportivos. Um dos primeiros foi a conga, (a marca se confunde com o objeto) de solado de corda e corpo de lona. A corda acumulava o suor, que combatíamos com o talco e no final o calçado ficava todo enlameado por dentro. A alternativa era lavar.

 Com este modelo já se iniciava o sistema use e jogue fora, porque não havia recuperação. A marca em voga era “Alpargatas”. Em seguida veio a conga de solado de plástico e também a basqueteira, de cano mais alto e cadarço, adaptado para esporte. Por esta época surgem também os sapatos esportes sem cadarço, “mocassins” , normalmente marrons, o que vem aliviar os nossos pés.

Os tios continuavam com os calçados tradicionais, e só os primos aderiam a estas novidades. Mas quando chegou a sandália japonesa, o meu primo Fidelão, de tio Emilio, espantou a todos exibindo os grandes pés brancos pùblicamente!

Os sapatos femininos, com  suas variações próprias seguiam estas mudanças. As tias mais idosas mantinham a tradição do sapato preto fechado, com salto, e as mais novas usavam  sapatos de salto, alguns com cores, e uma pequena abertura na frente. As adolescentes usavam também sandálias fechadas de couro e, as mais novas, sapato tipo “boneca”. Na sequencia é que foram surgindo as sandálias de couro tipo mete-dedo, com várias ornamentações. Minha irmã Aurora foi quem primeiro usou em Poções, para espanto de umas e encanto de outras.

 



Eduardo Sarno

Nov/ 03

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