16 março 2024

 

OS    PALAVRÕES E OS ITALIANOS

 * crônicas poçõenses *

 


          Minha tia Ana Maria Sangiovanni entrou correndo esbaforida em nossa  casa e  foi encontrar minha mãe na cozinha abrindo massa para macarrão, pois era quinta feira:

- Dona Annina, corre que estão xingando Dr. Ruy Espinheira de “bacharel”, pelo alto-falante.

Era Ângelo Neto fazendo suas perorações políticas para o povo da cidade e, sem querer, assustando  dona Ana.

Chegada  em Poções a pouco tempo da Itália, ela ainda não estava familiarizada com todas  palavras, carecendo portanto da explicação que minha mãe lhe deu, que “bacharel” era o mesmo que advogado.

Por acaso ou de propósito estas peças lingüísticas eram sempre pregadas aos recém chegados. Foi o que ocorreu com Antônio Libonati que, tendo sido recebido em Salvador pelos primos Pedro, Élio e Benito, foi almoçar na casa de Vicente Sarno, no Politeama de Cima, 22. Ensinaram para ele que açucareiro em português era “pinico”, e ele não vacilou em pedir ao tio que passasse o “pinico”!...

Mais precavida, tia Lelinha Pithon Sarno , esposa de Tio Vicente, achou por bem avisar logo a tia Ana assim que ela chegou a Salvador : “- Se perguntarem como se chama  “bolsa” em italiano não responda !” A advertência foi oportuna porque assim que conheceu tia Ana, Juracy de Fidélis insistiu para que ela dissesse como se chama “bolsa” em italiano. Minha tia, sob o olhar preocupado de tia Lelinha aprendeu a lição e se recusou a dizer “bolsetta”.

Os nossos tios eram práticos em um palavrão, e o carro-chefe era cazzu , que significa membro viril (Rohlfs), o vulgar caralho ou pica, com a variante  capo de cazzu, ou seja, cabeça de pica. Mas, se nós ousássemos dize-lo levávamos logo um tapa. Eles falavam com tanta naturalidade e freqüência que ficava difícil aceitar que nós também não o pudéssemos fazer.

Mas, contraditoriamente, o ambiente familiar era muito respeitoso e mesmo uma simples  porra  era objeto de recriminação e tapa na boca. Bosta  e merda também nem pensar, aliás, pensar e fazer podia, o crime era dizer.

Segundo uma versão divulgada por Irineu de Valentim Sarno, numa tarde nublada Américo Libonati ia descendo a Rua da Itália e já estava  no meio da praça, indo para a loja de ferragens quando cruzou com José Schettini e, sorridente, comentou :

“Giuseppe, guarda come stai lampando!”( “José, veja como está relampejando!”)

Como o José não estava no seu dia de bom humor, respondeu :

“Lampando sta il culo tuo, cazzu” ( “Relampejando teu cú, caralho.”)

Também era muito usado a expressão fessa,  (besta), com as variantes faccia de fessa ( cara de besta), fessa de mammata  ( besta da mãe) ou  fessa de ziata ( besta da tia) e esses eram ditos por tios e tias. A origem da palavra está no latim “fissus”, no sentido de vontade ou sentimentos divididos.  No dialeto trequinês “fezza, feminino feccia, que significa vulgar, desprezível. No dialeto siciliano “fissa” é o órgão genital feminino, entre outras acepções. A aplicação é lógica, pois tal órgão tem uma fissura, abertura.

Daí se referirem a uma coisa boba como “fessaria

  Quando queriam mandar alguém se danar a expressão usada era  va strafuta , também de uso familiar. Se em geral os xingamentos são difíceis de serem localizadas em suas origens, em italiano é mais complicado, porque são palavras ditas e nunca escritas, sendo que muitas delas derivam do dialeto trequinês ou mormanolo. Assim, por aproximação, temos , do dialeto trequinês,  vastà que significa “chega, basta” e frustafo significando “vá embora”.Segundo Rohlfs, 'strafuná' é distanciar-se, dispersar.O que poderia ser traduzido pelo nosso popular 'se pique'.

 As blasfêmias eram pouco ouvidas, mas a porca  miséria  tinha os seus usuários, e o seu sentido era reclamar da vida. Meu pai tinha predileção pelo uso de “borrabota”, que não chegava propriamente a ser um palavrão, mas a partir do significado de “mau engraxate” designa indivíduo reles, desprezível. Outra expressão que sempre usava era “capadócio”,  que apesar de suas origens greco-latinas, pois se refere a uma província turca da Ásia Menor, não tem em italiano a conotação que recebe em português : indivíduo acanalhado, impostor, trapaceiro, parlapatão.

Capotosta, também do dialeto trequinês,  sempre teve largo uso, e significa  cabeça dura, teimoso, obstinado.  É uma palavra formada de  capo, cabeça  e tosta , obstinada.

Os recém chegados da Itália também usavam o termo “brutto “(feio, desonesto, tolo) para se referir a pessoas  que fossem  indelicadas ou praticassem ações que demonstrassem ausência de sentimento.

“Abestalhado” ou “abestado”  eram formas aceitas para o uso doméstico para designar principalmente os meninos que, no conceito dos adultos, fizessem  alguma  besteira ou “bestagem”, como também era usado. Daí  o uso que meus tios faziam com freqüência do termo “bestalhão” que, na pronúncia deles saia “ bestalhon”.

Minha mãe tinha predileção de chamar minha irmã Noemia de “pamonha", quando ela teimava em ler revistas de foto-novela durante os horários não permitidos. Derivado do tupi  pamu’ñ ã”, significa, além de bolo de milho verde, pessoa mole, preguiçosa.

 Certa vez estávamos na grande mesa da copa almoçando, quando Betânia, uma meninota que tinha vindo da roça para ajudar nos serviços de casa, olhou pela porta lateral que dava para a rua e disse à minha mãe que ali tinha uma “burrega”. Como minha mãe não sabia o que era não deu atenção. Minutos depois, ao passar pela porta ela viu uma cabrita comendo as suas plantas. Aborrecida, chamou Betânia de burrega e mandou que ela tirasse a cabrita de lá. A partir deste dia passou a usar o termo para designar pessoas que ela considerava burras.

Outro neologismo que surgiu em circunstâncias bem definidas foi na ocasião em que algum órgão do Governo providenciou o peixamento do açude local com uma espécie denominada “Tilapia Melanopleura”, cuja grande façanha era se alimentar de detritos lançados às águas. A molecada não deixou por menos e passou a usar o termo “xilaia”  nos seus xingamentos mútuos, com acepção indefinida mas certamente pejorativa.

E assim a cultura do palavrão ia se difundindo e mesclando com as práticas  locais e quando começávamos a ir para a Escola Alexandre Porfírio, estávamos perto de receber o diploma de expressões chulas...e bilíngüe !

Os palavrões mais estranhos eram aqueles que na época não sabíamos o significado, e os principais era “xibungo” , pederasta passivo, e “sacana”, derivado do árabe “açaccó”, que significa  “aguadeiro” e que é usado para designar o canalha, patife, entre outros. Mas, como funcionavam, fazendo com que as pessoas ficassem  retadas, o uso era comum. Mas as palavras “retado”( estar zangado) e “porrêta” (bom, excelente) também não eram usadas socialmente.

Os doidos, quando eram provocados pelos moleques eram catedráticos de palavrão. A principal resposta, evidentemente, era que o apelido dele eqüivalia à “buceta”da mãe de quem o chamava. Mas isso não intimidava os moleques, que queriam ouvir mais. E lá vinha “filho da puta”, que na verdade saia com variantes por causa da pronúncia: “fi da puta” ou “féla da puta”, pois a pressa e a ignorância não permite classicismo.

 Para nós a novidade era que também as doidas sabiam um bom repertório de palavrões e era muito mais emocionante ouvi-las gritar “vá tomar no cú, seus safados”, do que os doidos.

Nas paredes da Escola o que mais se escrevia era “pica” e “buceta”, às vezes com ilustrações adequadas ao texto. “Xibiu”, que nos garimpos mineiros significa diamante pequeno, em Poções era sinônimo de “buceta”, que era representada por um triângulo. O mesmo acontecia com a palavra “binga”, que em lugares mais discretos significa isqueiro, mas aqui é “pênis” mesmo, e chamar alguém de “tampa de binga”  deixava claro, de forma criativa, o significado.

Uma outra expressão que também se adiantava numa explicação mais completa era “filho de puta com soldado raso, ofendendo os brios das Forças Armadas.

Às vezes ainda não tínhamos nem a percepção exata do significado do palavrão, mas a ênfase com que era dito já bastava para motivar uma briga. Era o caso de “viado”, (com “i”)  cuja compreensão não era completa para todos nós.

Xingar-nos mutuamente de “corno” não fazia o menor sentido, mas, apesar disso era usado. Os mais sabidos já faziam uma ligação direta com os pais da pessoa a ser ofendida, tornando o sentido mais lógico.

“Vai te fuder”, ou “estou fudido” era de um caráter tão dúbio que nos confundia. Já compreendíamos que “fuder” era uma coisa boa, e como se podia querer mal a alguém mandando ele se “fuder” ? Como poderia alguém se “fuder” sozinho? E por que estar “fudido” era estar em uma situação ruim?

Alguém tinha dito que “porra” significava esperma, e não fazia sentido para nós que alguém gritasse “esperma” quando estivesse zangado.

As garotas, em absoluto não se permitiam dizer a mais simples “porra”, e quando ouviam dos meninos alguns palavrões diziam “- Queta, ozado” e no recinto sagrado do lar a chamada boca suja era lavada no tapa. Restava, progressivamente, a escola, a rua e o bordel. Vitalina, dona da casa de raparigas  mais freqüentada tinha uma fala rendilhada de palavrões.

Mesmo com a circulação nos bordéis não havia novos palavrões. O rádio não se prestava para isso e a televisão não existia. Só com a ida das primeiras levas de ginasianos, para Jequié, no Colégio do padre Spínola – aquele que pegava nos peitinhos das alunas fardadas dizendo: “-Escudinho novo, hem ?” ou para Salvador, no Vieira, Salesiano e Maristas é que os horizontes lingüisticos se ampliavam. Já se sabiam de nomes eruditos como “baitola, pederasta” ou “homossexual”. Até de “franchona” já se comentava, sem falar no “sessenta e nove”, mas aí já é uma outra história, da prática e não da fala. Ou da prática do falo.

Foi justamente em Jequié, em 1957, quando Pietro Pasquale Sangiovanni, o conhecido Pepone foi fazer o exame de admissão que lhe perguntaram se ele já sabia  bater punheta”. Inocente, respondeu que não e então lhe ensinaram  um movimento de destreza com os dedos indicadores e polegares alternando-se, num movimento sem fim,  e disseram que isso era bater punheta. Na sala de aula, depois de feita a prova, contente, Pepone querendo se enturmar perguntou ao professor se ele já sabia bater punheta. Sem perceber o olhar de incredulidade do professor ele, movimentando os referidos dedos disse sorrindo: “- Eu já aprendi, professor, olhe só!”

Eduardo Sarno

Outubro.98

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