31 agosto 2009

Os Livros

Na nossa casa em Poções, no canto da sala de jantar, havia um pequeno móvel sobre o qual ficava o grande rádio Phillips de válvulas. Embaixo do rádio, em uma prateleira, alinhavam-se os livros que estavam sendo lidos. Lembro que dois livros ali permaneceram por muito tempo, e sempre citados por meu pai. Um era sobre a trajetória de Jânio Quadros, a quem ele admirava, acreditando que a vassoura janista iria varrer a sujeira do país. O outro era “E a Luz se fêz – o romance da astronomia”, de Rudolf Thiel. Meu pai citava os dados e informações dos livros com um entusiasmo contagiante.
Os outros livros e coleções da casa eram guardados no “quarto de Santo”, assim chamado porque abrigava o nicho com as imagens da nossa devoção, capitaneadas pelo Menino Jesus.
Ficavam em uma estante aberta, de madeira preta torneada. A maior era a “Coleção Saraiva”, do nome do fundador da editora. Estes livros tinham sempre uma tarja amarela na capa, que os identificavam facilmente.
Os títulos eram os mais diversos, tanto da literatura nacional como estrangeira. Os desenhos da capa eram impressionantes. Havia um em que enormes ratos invadiam a cidade e aquela imagem fantástica sempre me perseguiu. Era o romance “O Alimento dos Deuses”, de H.G. Wells.(foto)

Só as capas eram ilustradas, mas elas tinham o poder de criar em nossas mentes uma imagem e uma configuração das cenas e personagens que nos acompanhavam pela vida afora.
O livro “Viagem à Aurora do Mundo”, de Érico Veríssimo, narrando o mundo na época dos dinossauros me impressionou vivamente. Eu passei a conceber a história como antes, durante e depois dos dinossauros.
A “Biblioteca das Moças” só tinha por leitoras minhas irmãs. Eram romances "água com açúcar", que se limitavam aos envolvimentos afetivos e emocionais num rápido contexto social.
Recebiam de nossa parte uma eventual folheada a revista “Alterosa”, editada em Minas Gerais ,que tratava de variedades femininas , assim como a “Vida Doméstica”. Só muito raramente também líamos “Grande Hotel” e mais tarde “Capricho”, que eram revistas de foto-novelas. Nelas as histórias eram narradas em quadros fotografados e não desenhados.
Editada pela Vecchi, a revista “Grande Hotel” só trazia foto-novelas produzidas na Itália. Lembro de um desses dramas que começava com um jovem que havia fugido da prisão e conhecia a vendedora de uma loja de discos. Óbviamente a evidencia da inocência do jovem só surgia no final da trama.
A revista “Seleções do Reader’s Digest” “artigos de interesse permanente condensados em formato de livro” chegava mensalmente. A coleção já estava tão grande que havia um baú na despensa, onde eles eram colocados. Meu pai, além de ler, citava suas informações e opiniões nas suas conversas, para reforçar a credibilidade e ilustrar o assunto. Praticamente “Seleções” substituía uma enciclopédia e moldava um ponto de vista, porque eram artigos de fundo sobre todas as áreas do conhecimento humano. Nós também líamos muito e nos acostumávamos àquela redação homogênea e ao modo americano de descrever “meu tipo inesquecível” e de contar piadas, acreditando que “rir é o melhor remédio”. Durante muitos anos pratiquei alguns exercícios físicos que eram sugeridos em um artigo tipo “oito segundos de ginástica”, com bons resultados.
Em abril de 1946, no pós guerra, data em que eu nasci, a edição mensal de Seleções trazia um artigo prevendo que a Europa se organizaria como os Estados Unidos, um outro advertindo que entramos na era das microondas, outro afirmando que será lenta a industrialização da China e ainda outro sobre como aprender a conviver com os russos. As edições para a América Latina eram impressas em Cuba e até na propaganda o clima de pós guerra prevalecia : os helicópteros Sikorsky “os únicos usados durante a guerra” agora “vestem-se à paisana” e a General Motors, cuja “qualidade forjou a Vitória agora forja o Progresso !” Também os controles eletrônicos, fabricados pela Honeywell Brown para os bombardeiros, agora estavam adaptados aos aparelhos de ar condicionado. Nesta edição até Gary Cooper aparecia fazendo propaganda de lâminas de barbear...
As revistas adultas chegavam primeiro no balcão da Casa Sarno. Eram “O Cruzeiro” e “A Cigarra”. A página mais procurada era a do “Amigo da Onça”, de Péricles, publicada em ”O Cruzeiro”, e depois colecionadas por minha irmã Aurora. Estas revistas traziam as novidades do Brasil e do mundo, as reportagens mais diversas e a opinião de David Nasser. Por serem ilustradas eram um poderoso instrumento da nossa compreensão visual do mundo. Tinham um cheiro característico de papel novo que nos deixava inebriados. Era ali que víamos as primeiras moças vestidas de maiô, personagens de incipientes sonhos eróticos.
Na parte da formação religiosa, além da leitura de vidas de santos em publicações piedosas e do missal quotidiano, editado pelos beneditinos em Salvador, minha mãe era assinante de um jornalzinho chamado “Mensageiro da Fé” e eu de outro intitulado “Amigo da Infância”, ambos editados pelos frades franciscanos também em Salvador. Eu lia com prazer aqueles artigos leves e fazia todos os jogos e diversões que vinham impressos, principalmente o de localizar figuras em uma paisagem.
Uma leitura obrigatória para o rito de passagem era o Catecismo da Doutrina Cristã, que precedia a primeira comunhão.

O meu exemplar (foto) esclarecia na folha de rosto: “Guia ao Céu – para todas as classes de pessoas”, e trazia a dedicatória de minha irmã Tereza: “Eduardinho, que Jesus habite sempre no seu coraçãozinho e não se esqueça de pedir a N. Senhor pelos maninhos – Tereza e Amarílio – 28 de Maio de 1955”.
Havia um livro , “México Mártir”, que narrava o sofrimento dos cristãos mexicanos, vitimas dos comunistas, que queriam fazer a reforma agrária. Como, felizmente, a primeira leitura nem sempre é a que permanece, depois percebi que os “cristãos” na verdade eram os conservadores, os grandes proprietários rurais.
A coleção que mais nos marcou foi a de Monteiro Lobato. Os nossos exemplares eram forrados de pano e as muitas ilustrações nos deixavam uma forte convicção de realidade virtual. Os personagens e as situações nos eram familiares em muitos aspectos e o desejo de absorver todo aquele conhecimento e informações fazia com que toda a coleção fosse lida de uma assentada. Nossa casa ficava povoada de Pedrinhos e Narizinhos, supervisionados por D.Benta e Tia Anastácia.
Em geral a censura era feita por Tereza, minha irmã mais velha, que decidia e escolhia o que os outros irmãos podiam ler. Havia também uma coleção de livretos da editora Melhoramentos sobre a mitologia grega que nos levava a um universo distante e imaginário.
“A Toutinegra do Moinho”, (1) de Emilio Richebourg, era o gênero de romances preferidos de minha mãe. Ela só nos permitia a leitura fora do horário “comercial”, ou seja, antes das oito da manhã, depois do almoço e à noite, depois do jantar. Havia porém o inconveniente da luz, pois usávamos o “Aladim”, cuja claridade atraia uma multidão de insetos voadores. Depois, quando meus tios instalaram um motor próprio passamos a ter luz elétrica normal, mas só até dez horas da noite.
Havia uma revista policial chamada “X-9”, que trazia contos sobre crimes nos Estados Unidos. Na parte central havia paginas amarelas, com fotos e relatos de grandes crimes reais. Na gíria, o informante da policia, por causa desta revista, passou a ser chamado de X-9.
Antes da Segunda Guerra Mundial havia em Poções a “Associazione Italiana Dopolavoro Umberto Maddalena” (2)(foto) que funcionava onde hoje é a residência de Luís Sarno, que na época era o bibliotecário.

Os livros podiam ser tomados de empréstimo e lidos em casa. De Dante havia obviamente “La Commedia”, catalogado como número 12, e “O Príncipe”, de Macchiavelli, ofertado por Giuseppe Grisi, de número 57.(fotos)




Depois da Guerra os livros desta biblioteca não mais circularam, e em nossa casa não havia nenhum livro em italiano nem recebíamos jornais ou revistas da Itália. Só mais tarde, quando veio da Itália o último casal de parentes, Giovanni e Lina Sola foi que ele trouxe catálogos de marcenaria e ela revistas de figurinos e moda, além de livros didáticos.
Quando eu estudava no Seminário, em Amargosa, era o encarregado de uma pequena livraria que atendia aos colegas. Fazia os pedidos para São Paulo, nas editoras Vozes, Herder e recebia tudo normalmente. Certa vez avisei a meu pai que havia feito um pedido de alguns livros para mim, e que seriam entregues em Poções. Passado algum tempo recebi uma carta dele avisando que os livros haviam chegado, mas perguntando para que eu precisava de tantos livros ! Foi então que percebi que a editora havia se enganado, enviando para Poções o pedido que era para o Seminário, com mais de 100 exemplares !

Eduardo Sarno
Setembro.1998

(1) – Toutinegra é um pássaro de plumagem escura e canto ameno.
(2) - Herói da aviação italiana, falecido em 1931.