FIDELIS DE
TIO VALENTIM
Ele era o Fidelis de tio Valentim, para não
confundir com o Fidelis de tio Vicente, o de tio Luis, o de tio Emilio, o de
tio Camilo ou mesmo o José Fidelis de Corinto.
Ao lado da cultura local, interiorana, caatingueira
e mateira, bem brasileira, Fidelis herdou também a convivência com a cultura italiana dos pais.
O pai, tio Valentim, calmo e afetuoso, também sócio da Casa Sarno, onde atendia
no balcão, se relacionava de maneira alegre com a clientela local. Conta-se que
quando o chapéu que vendia ficava folgado
ele colocava a mão na nuca do freguês e fazia ficar “ajustado” !
A mãe, Giusepina, natural de Trecchina, muito ativa, de uma comunicação fácil e com
uma filosofia de vida que ajudou a enfrentar e superar as dificuldades, que não
eram poucas, naquele final da década de 30, quando veio à luz o nosso querido
Fidelis Geraldo Sarno.
Naquela época, para dar a notícia aos tios e amigos,
costumava-se enviar alguém dizendo:
“- A tia manda avisar que tem mais um criadinho às
ordens !”
Foi em Poções que Fidelis teve os primeiros contatos
com a cultura popular, e mais especificamente a religiosa, ao acompanhar de
perto a festa do Divino Espírito Santo, padroeiro da cidade, tradição herdada
dos portugueses que colonizaram a região, do clã de João Gonçalves da Costa.
Além de ver e acompanhar a chegada do Mastro da Bandeira,
a Cavalhada, as barraquinhas e o leilão, o Bumba meu Boi, ele também
participava da procissão, onde balançava o turíbulo na frente do andor de São
Roque, espargindo o incenso.
O andor era carregado pelo pai e pelos tios, e
ornamentado com rosas, cravos e gérberas com a ajuda da mãe e tias.
Foi lá também que ele conheceu a projeção de filmes,
no cinema de Brás Labanca. Quando o filme quebrava, Nicola Leto, o encarregado
da projeção já cortava uma tira a mais, que tinha endereço certo: as mãos de
Fidelis Geraldo, que depois projetava em um lençol, com caixas, lentes e
lanternas, para os primos e meninos que pagavam alguns réis, no quarto dos
fundos da sua casa.
Participou de peças teatrais, no Cine-Teatro Santo
Antonio, onde, trajando grossa capa e botas, compunha a cena do Grito do
Ipiranga. Só teve uma fala, mas entre a platéia que aplaudia estava o Dr.
Fernando Costa, prefeito da cidade.
O caminho natural de todos nós era ir estudar em
Salvador, e Fidelis foi um dos que saíram mais rapidamente de Poções, mas ao
mesmo tempo nunca saiu de lá. Esta contradição se explica quando sabemos que
ele sempre teve Poções em sua mente, em seus sentimentos, em seu trabalho
profissional de cineasta..
A partir de então aquele menino começou a crescer, a
ver, viver e virar o mundo.
Fidelis, segundo seu próprio depoimento, de início
imaginava que cinema só poderia ser feito no glamour de Paris ou Nova York, mas
depois descobriu que na caatinga também ocorriam dramas e comédias, e que o
povo tinha cantos e cores, amores e dores.
Foi ele quem me sugeriu fazer em Poções uma pesquisa
sobre o Bumba Meu Boi e o Terno de Reis. Eu ia à noite para o final da Rua de
Morrinhos, entrevistar e gravar as cantorias. Os participantes eram pessoas simples, cujo chefe era o guarda
noturno da cidade, um negão alto e simpático ( naquela época não havia
afro-descendentes), que fazia circular entre nós uma cachaça gostosa de Ibicuí,
para esquentar o frio da madrugada.
Ali eu vi o que Fidelis me apontava: a cultura
original, pura, nossa, entranhada no nosso povo.
Ele sempre foi para nós muito avançado, desde quando
caçava rolinhas , para o lado de Cachoeirinha, já com espingarda de encher pelo
cano, enquanto nós usávamos badoques, até quando viajou para o exterior, e o povo
comentava, com voz grave e baixa:
“O filho de seu Valentim foi visitar Cuba !”
Eu, tempos depois em Salvador, já estudando no
Maristas e pensando em ir para o Seminário, encontro Fidelis na rua do Forte
São Pedro e pergunto à queima roupa:
“- Mas Fidelis, você é comunista?”
Ele me explicou questões sociais e políticas
básicas, mas na ocasião eu ainda não estava maduro para entender tudo aquilo.
Só anos depois
Com o Golpe de 64 Fidelis foi para Poções, sob a proteção
da família, refugiar-se na fazenda Caititu. Na perseguição, o Exército
conseguiu, em plena praça, cercar Fidelis, com metralhadoras ameaçadoras !
Mas, não era este Fidelis, era o Fidélis de Tio Emilio, o conhecido Fidelão, alto, sorridente e bonachão !
Com o tempo é que fui entendendo a grandeza e a
importância do trabalho cultural que ele desenvolvia, desde o Centro Popular de
Cultura – o CPC da UNE, até os filmes e documentários, que mostram de maneira
clara e inequívoca um Brasil que precisa ser conhecido para poder ser
transformado.
Pessoas como Fidelis não ficam velhos. Os anos significam que ele convive dentro de si com o menino, o rapaz, e o adulto. Tudo isso se soma e ele nunca perdeu a capacidade de criar, de se entusiasmar e de ensinar.
Saudades.