11 março 2024


 

                                FIDELIS   DE  TIO  VALENTIM

 O nome é uma homenagem ao avô, Fedele  Sarno, que nasceu e morreu em Mormanno, pequena cidade no sul da Itália, sem nunca ter vindo ao Brasil. Mas para cá vieram os sete filhos, que moravam na Rua da Itália, em Poções, pequena cidade no sudoeste da Bahia.

Ele era o Fidelis de tio Valentim, para não confundir com o Fidelis de tio Vicente, o de tio Luis, o de tio Emilio, o de tio Camilo ou mesmo o José Fidelis de Corinto.

Ao lado da cultura local, interiorana, caatingueira e mateira, bem brasileira, Fidelis herdou também  a convivência com a cultura italiana dos pais. O pai, tio Valentim, calmo e afetuoso, também sócio da Casa Sarno, onde atendia no balcão, se relacionava de maneira alegre com a clientela local. Conta-se que quando o chapéu que vendia ficava folgado  ele colocava a mão na nuca do freguês e fazia ficar “ajustado” !

A mãe, Giusepina, natural de Trecchina,  muito ativa, de uma comunicação fácil e com uma filosofia de vida que ajudou a enfrentar e superar as dificuldades, que não eram poucas, naquele final da década de 30, quando veio à luz o nosso querido Fidelis Geraldo  Sarno.

Naquela época, para dar a notícia aos tios e amigos, costumava-se enviar alguém dizendo:

“- A tia manda avisar que tem mais um criadinho às ordens !”

Foi em Poções que Fidelis teve os primeiros contatos com a cultura popular, e mais especificamente a religiosa, ao acompanhar de perto a festa do Divino Espírito Santo, padroeiro da cidade, tradição herdada dos portugueses que colonizaram a região, do clã de João Gonçalves da Costa.

Além de ver e acompanhar a chegada do Mastro da Bandeira, a Cavalhada, as barraquinhas e o leilão, o Bumba meu Boi, ele também participava da procissão, onde balançava o turíbulo na frente do andor de São Roque, espargindo o incenso.

O andor era carregado pelo pai e pelos tios, e ornamentado com rosas, cravos e gérberas com a ajuda da mãe e tias.

Foi lá também que ele conheceu a projeção de filmes, no cinema de Brás Labanca. Quando o filme quebrava, Nicola Leto, o encarregado da projeção já cortava uma tira a mais, que tinha endereço certo: as mãos de Fidelis Geraldo, que depois projetava em um lençol, com caixas, lentes e lanternas, para os primos e meninos que pagavam alguns réis, no quarto dos fundos da sua casa.

Participou de peças teatrais, no Cine-Teatro Santo Antonio, onde, trajando grossa capa e botas, compunha a cena do Grito do Ipiranga. Só teve uma fala, mas entre a platéia que aplaudia estava o Dr. Fernando Costa, prefeito da cidade.

O caminho natural de todos nós era ir estudar em Salvador, e Fidelis foi um dos que saíram mais rapidamente de Poções, mas ao mesmo tempo nunca saiu de lá. Esta contradição se explica quando sabemos que ele sempre teve Poções em sua mente, em seus sentimentos, em seu trabalho profissional de cineasta..

A partir de então aquele menino começou a crescer, a ver, viver e virar o mundo.

Fidelis, segundo seu próprio depoimento, de início imaginava que cinema só poderia ser feito no glamour de Paris ou Nova York, mas depois descobriu que na caatinga também ocorriam dramas e comédias, e que o povo tinha  cantos e cores,  amores e dores.

Foi ele quem me sugeriu fazer em Poções uma pesquisa sobre o Bumba Meu Boi e o Terno de Reis. Eu ia à noite para o final da Rua de Morrinhos, entrevistar e gravar as cantorias. Os participantes eram  pessoas simples, cujo chefe era o guarda noturno da cidade, um negão alto e simpático ( naquela época não havia afro-descendentes), que fazia circular entre nós uma cachaça gostosa de Ibicuí, para esquentar o frio da madrugada.

Ali eu vi o que Fidelis me apontava: a cultura original, pura, nossa, entranhada no nosso povo.

Ele sempre foi para nós muito avançado, desde quando caçava rolinhas , para o lado de Cachoeirinha, já com espingarda de encher pelo cano, enquanto nós usávamos badoques, até quando viajou para o exterior, e o povo comentava, com voz grave e baixa:

“O filho de seu Valentim foi visitar Cuba !”

Eu, tempos depois em Salvador, já estudando no Maristas e pensando em ir para o Seminário, encontro Fidelis na rua do Forte São Pedro e pergunto à queima roupa:

“- Mas Fidelis, você é comunista?”

Ele me explicou questões sociais e políticas básicas, mas na ocasião eu ainda não estava maduro para entender tudo aquilo. Só anos depois em São Paulo, e depois no Rio de Janeiro, eu já na militância clandestina, na época da ditadura militar, visitava Fidelis e conversávamos longamente. Ele já com uma postura mais moderada e eu mais radical.

Com o Golpe de 64 Fidelis foi para Poções, sob a proteção da família, refugiar-se na fazenda Caititu. Na perseguição, o Exército conseguiu, em plena praça, cercar Fidelis, com metralhadoras ameaçadoras !

Mas, não era este Fidelis, era  o Fidélis de Tio Emilio, o conhecido Fidelão,  alto, sorridente e bonachão !

Com o tempo é que fui entendendo a grandeza e a importância do trabalho cultural que ele desenvolvia, desde o Centro Popular de Cultura – o CPC da UNE, até os filmes e documentários, que mostram de maneira clara e inequívoca um Brasil que precisa ser conhecido para poder ser transformado.

Pessoas como Fidelis não ficam velhos. Os anos  significam que ele convive dentro de si com o menino, o rapaz, e o adulto. Tudo isso se soma e ele nunca perdeu a capacidade de criar, de se entusiasmar e de ensinar.

É este  pois o nosso Fidelis para quem toda a nossa família tem carinho e orgulho e, para alegria geral, sabemos que os sentimentos dele para conosco sempre os mesmos.

Saudades.

 Eduardo Sarno