14 março 2024

 

OS  LAMBANCEIROS

- crônicas poçõenses -

 Havia sempre um moleque manioso em Poções procurando lambança. Cada um tinha sua turma e todo dia procurava-se uma novidade para brincar, seja depois das aulas, durante o ano ou o dia todo durante as férias.

 João Batatinha, Zoma, Adilson Fagundes, Antonio Napoli, Dau Cachimbo de Pau, Raimilson e Ozail Gusmão, andavam em bando nas obras para a construção do açude novo, e ficaram impressionados quando viram o tamanho das rodas das máquinas. A esteira do trator hipnotizava a todos. Quando um dos tratores caiu dentro do açude foi um corre corre da meninada para saber o que aconteceu: morreu o tratorista ou foi salvo por um mergulhador ? a noticia se espalhava e aquela gente curiosa ia ver a novidade.

Do paredão da barragem do açude, a molecada descia correndo destrambelhada, sem pensar nos perigos. E no meio das baronesas disputavam para ver quem mergulhava mais fundo e só pararam quando alguém disse que havia visto a cara de “Quatro Olhos”, que havia morrido afogado. Nem a cuia com a vela acesa que foi colocada sobre as águas achou o corpo.

Abaixo do açude novo ficava o açude velho, que já não dava mais conta. O grande paredão de pedras estava rachado e já havia sido coberto pelas águas várias vezes, ameaçando inundar a cidade. Nestas ocasiões era a sirene do Cine Glória que alertava a população, de dia ou de noite. Meu pai costumava me levar lá para passear , aos domingos, e eu ficava impressionado e temeroso com aquelas águas de um  azul-escuro, com as baronesas boiando, mas a mão do meu pai era minha segurança.

 Mais abaixo do açude velho havia uma grande cisterna, que nos metia medo, profunda e com grandes sapos mortos  lá dentro.  E, já perto da rua, uma enorme gameleira onde se dizia que havia tesouros enterrados, junto ao seu tronco. Eram talvez lendas do tempo dos Gonçalves da Costa quando da exploração de ouro ou da época dos jagunços, que escondiam munições. Alta e esgalhada a imponente e solitária gameleira não dizia que sim nem que não.

Era lá na cisterna que as empregadas iam buscar areia fina para arear as panelas de alumínio. Também era lá que se brincava de seriados, com capas e espadas ,convencionando que o perigo dito  “do meio” era o mais terrível !

 O açude novo também serviu mais tarde de palco para guerras com espingardas de socar, com um grupo de cada lado e as lavadeiras no meio gritando: “- Pára, meninos endiabrados, pára !”

Os caroços de chumbo no antebraço de Gey Espinheira, até hoje, não me deixam mentir.

Com a chegada do circo, os lambanceiros não saiam da praça, e tudo era motivo de euforia redobrada. Todos queriam saber se tinha animais amestrados, qual o nome do palhaço e o horário da função. Acompanhado pela algazarra dos moleques lá se ia o palhaço da perna de pau anunciando o circo pela cidade:

“- E viva o sol e viva a lua

Olha o palhaço no meio da rua !”

À noite, apesar da vigilância do mata-cachorro, havia sempre uma treita para entrar por baixo da lona, e subir nas arquibancadas para ver o espetáculo. No intervalo as artistas iam para a arquibancada vender um monóculo com a foto colorida da trapezista.

Certa vez uma delas, muito bonita, apaixonou-se por Carlos Ney, que era um dos rapazes mais charmosos de Poções. Nós todos torcíamos para que aquele amor impossível desse certo. Ele dedicava anonimamente músicas românticas para ela, no serviço de alto falante da cidade. Este serviço pertencia à  Prefeitura e depois passou para Tonhe Luz, divulgando notícias e músicas em todo o comércio.

Carlos Ney e a trapezista encontravam-se às escondidas da família e do dono do circo. Um dia o circo foi embora, levando a bela trapezista e o seu destino.

 Mas a cada Festa do Divino grandes novidades chegavam, entre elas o parque de diversões. E os moleques de calça curta, suspensórios e alpercatas de pneu arregalavam os olhos quando giravam na roda gigante colorida, ondulavam no carrossel mambembe, ou balançavam nos barcos que eram empurrados à mão.

A chegada eventual de acampamentos ciganos e as feiras aos sábados, mantinham os lambanceiros ocupados. Um se aproximava da pilha de melancias e furava uma delas. O outro então procurava o dono das melancias e dizia “- Seu home, me dá essa que ta furada...” e lá se iam rindo do coitado e chupando a melancia. Depois pegavam um cavalo que estava amarrado, davam uma volta com ele e quando o dono aparecia diziam “- Seu moço, olha o seu cavalo que nós apanhamos aculá e viemos procurar o dono ...”.

Naquele tempo faltava tempo para se fazer tudo que se inventava...

 

                                        João Batatinha

Ainda hoje, da porta de sua tipografia, João Batatinha jura que já viu o pintor Adilson Santos, como nas visões de seus quadros surrealistas, cercado de pombas, andando pelo fundo de quintal com a noiva da cidade.

Eduardo Sarno

Jan/98

 

O BECO LÁ DE CASA (2)

- crônicas poçõenses -

 Imprensado entre minha casa e o Cine Glória, nosso  beco era  muito freqüentado. Ali ficava também o escritório de Brás Labanca.

 Baixo, forte e simpático, este italiano dono da Empresa de Luz Elétrica Pública e Particular de Poções, nunca se negava a nos dar uma “nica” (níquel) quando pedíamos. Foi com tristeza e curiosidade que assistimos à derrubada da parede da usina que dava para o beco, para que técnicos paulistas pudessem tirar  a enorme polia avariada, silenciando o gerador diesel. Uma peça nova viria do Sul, disseram. Nunca chegou.

No nosso portão, que dava para o beco, tinha umas argolas no muro que servia para amarrar os jumentos dos aguadeiros. Cangalha de quatro corotes,ou "carotes" como se dizia em Poções, lá se iam e lá vinham, trazendo aquela água cristalina e saborosa, a água de Cachoeirinha.

 No inicio do beco, os três pequenos buracos no chão, enfileirados como as Três Marias que víamos no céu, eram do tamanho de um punho fechado, e era ali que a gente brincava de bola de gude, nas tardes intermináveis. Para ganhar, tínhamos de conquistar os três buracos na seqüência, e afastando as bolas dos adversários. Às vezes, com rolimãs de aço, tentávamos quebrar as bolas de gude dos outros meninos. Era admirado quem fosse maneiroso para segurar as bolas de gude, ter boa pontaria e força.

Ninguém sabia como e nem porque, e de repente estávamos todos mudando de jogo, às vezes no mesmo período de férias. Quando era época de pião, os buracos de gude ficavam abandonados e o bamba era quem  colocava o pião na unha para rodar, e o super bamba era quem pegava ele no ar, na unha! Os menos destros ficavam maravilhados e algumas vezes se machucavam na tentativa de imitar. No circulo riscado no chão o pião de ponta de aço rachava os outros no meio. Para não perder o bom pião, valia trocar por um mais ordinário, na hora de levar a porrada.

Passado o tempo do pião, agora eram duplas batendo tampinhas de refrigerante desamassadas nas paredes do beco. Eram as “fichas” . Ganhava quem rebatesse mais perto da ficha do adversário. Apostava-se carteira de cigarros vazia. O “Astória” valia menos, “Continental” um pouco mais, e " Roliude” já era  um valor razoável.

 Cada garoto tinha no bolso o seu maço de carteiras bem alisadas e classificadas, e quando  chegavam fumantes de fora íamos ver se não trazia “Marlboro”: valia três “Roliude”! O maço podia aumentar se fossemos para a rua procurar carteiras vazias, ou diminuir se perdêssemos na ficha.

O papel colado ao alumínio que envolvia os cigarros era cuidadosamente dissolvido na água e a fina  película de alumínio que ficava, era utilizada para formar enormes e pesadas bolas, as maiores chegando a ter vinte centímetros de diâmetro! Era uma espécie de troféu.

Passou a época das fichas, agora o que vale é “triangulo”. Cada garoto já carrega o seu canivete ou estilete. Procura-se uma boa parte do beco em que o chão seja mais consistente, desenham-se dois triângulos, e um tenta cercar o outro traçando linhas a partir do ponto onde se fincou o estilete, no arremesso. Se este não fincar, perde-se a vez. A grande destreza era fazer o canivete rodopiar no ar antes de fincar no chão. Iniciava o jogo quem fincasse mais próximo de uma linha traçada no chão.

Já esquecemos o triangulo, agora é tempo de “setas” : um prego afiado, três ou mais penas de galináceo e cera de abelha para dar  peso e segurar o prego nas penas.

E lá se vão todos procurando portas e janelas no beco para treinar a pontaria e disputar pontos nos alvos.

Talisca de bambu, cola, papel de seda e linha Urso número zero. Chegou a época de empinar papagaios e arraias. Pequenas, grandes, coloridas e longos rabos de retalhos de pano. Algumas tinham linhas “temperadas” com pó de vidro e goma arábica, para cortar mais fácil a linha dos outros. Quando isso acontecia, era a festa para a molecada, que saía correndo atrás da arraia que caía.

Até o Dr. Ruy Espinheira fez um “Couro de Boi” que maior nunca se viu, todos paravam para ver e pediam para dar uma puxadinha na linha,ou colocar um “telegrama” que era um pedaço de papel que  subia na linha até a arraia.

Como o beco é muito pequeno para empinar papagaio, nós fomos para a Praça do Obelisco.

Acho que ficamos lá por muitos anos, pois  quando voltamos ao beco ele estava calçado, Brás Labanca havia falecido, o Cine Glória era agência bancária e a argola estava toda enferrujada.

 

                                Escritório de Brás Labanca
Eduardo Sarno

Nov/2003

 

 

O BECO LÁ DE CASA (1)

- crônicas poçõenses -

 O  beco entre nossa casa e o Cine Glória era o meu local preferido para as brincadeiras.

 No chão do beco havia   três pequenos buracos, enfileirados como as Três Marias no céu.  Ali  brincávamos de bola de gude, nas tardes intermináveis.

 O ganhador tinha de conquistar os três buracos na seqüência,  afastando as gudes dos adversários. Às vezes, com rolimãs de aço, tentava-se quebrar as bolas de gude dos outros meninos. Era admirado quem fosse maneiroso para segurar as bolas de gude, ter boa pontaria  e dedos compridos, para marcar o círculo em que a gude do adversário seria apanhada.

 Ninguém sabia como, e de repente todos mudavam de jogo, às vezes no mesmo período de férias. Quando era época de pião, os buracos de gude ficavam abandonados e o bamba era quem  colocava o pião na unha para rodar, e o super bamba era quem pegava ele no ar, na unha! Os menos destros ficavam maravilhados e algumas vezes se machucavam na tentativa de imitar. No circulo riscado no chão o pião de ponta de aço rachava os outros ao meio. Para não perder um bom pião, valia trocar por um mais ordinário, na hora de levar a porrada.

 Passado o tempo do pião, agora eram duplas batendo tampinhas de refrigerante desamassadas, nas paredes do beco. Eram as “fichas”, com tampinhas do guaraná e gasosas da  Fratelli Vita . Ganhava quem rebatesse mais perto da ficha do adversário. Apostava-se carteiras de cigarros  vazias, alisadas e bem dobradas. O papel  que envolvia os cigarros era cuidadosamente dissolvido na água,  e a fina  película de alumínio que ficava era utilizada para formar enormes e pesadas bolas, as maiores chegando a ter vinte centímetros de diâmetro! Era uma espécie de troféu.

 O Astória valia menos, Continental um pouco mais, e  “Roliude” já era  um valor razoável. Cada garoto tinha no bolso o seu maço de carteiras  , e quando  chegavam fumantes de fora ia ver se não traziam “Malboro” ou “Luquistrique”: valiam três “Roliude”! O maço  aumentava quando se achava carteira vazia, ou diminuía  perdendo na “ficha”.

  Passada a época das “fichas”, agora o que vale é  “triângulo”. Cada  garoto já carrega o seu canivete ou estilete.  Procurava-se no beco um lugar que fosse mais consistente, riscava-se  no chão dois triângulos separados , no arremesso  tentava-se cercar o outro traçando linhas a partir do ponto onde se fincou o estilete. Se este não fincar, perde-se a vez. A grande destreza era fazer o canivete rodopiar no ar antes de fincar no chão. Iniciava o jogo quem fincasse mais próximo de uma linha riscada no chão.

 Já esquecemos o triângulo, agora é tempo de “setas” : um  prego  afiado, três ou mais penas de galinácea e cera de abelha para dar  peso e segurar o prego nas penas. E lá se vão todos procurando portas e janelas no beco para treinar a pontaria e disputar pontos nos alvos.

 Chegou a época de empinar arraias : talisca de bambu, cola, papel de seda e linha Urso número zero. Pequenas ou grandes, sempre coloridas e longos rabos de retalhos de pano. Algumas tinham linhas “temperadas” com pó de vidro e goma arábica, para cortar  a  dos outros. Quando isto acontecia, era a festa para a molecada, que saía correndo atrás da arraia .

 

Até o Dr. Ruy Espinheira fez uma arraia “Couro de Boi” que maior nunca se viu. Todos paravam para ver e pediam para dar uma puxadinha na linha para sentir a força, ou para colocar um “telegrama”, que era um pedaço de papel que  subia na linha até a arraia.

 Como o beco era muito pequeno para empinar papagaio, nós fomos para a Praça do Obelisco.

 


Acho que ficamos lá por muitos anos, pois  quando voltamos ao beco ele estava calçado, as paredes pintadas e as rodas  dos carros passando por cima da nossa infância.

 Eduardo Sarno

set/2019