14 março 2024

 

O BECO LÁ DE CASA (1)

- crônicas poçõenses -

 O  beco entre nossa casa e o Cine Glória era o meu local preferido para as brincadeiras.

 No chão do beco havia   três pequenos buracos, enfileirados como as Três Marias no céu.  Ali  brincávamos de bola de gude, nas tardes intermináveis.

 O ganhador tinha de conquistar os três buracos na seqüência,  afastando as gudes dos adversários. Às vezes, com rolimãs de aço, tentava-se quebrar as bolas de gude dos outros meninos. Era admirado quem fosse maneiroso para segurar as bolas de gude, ter boa pontaria  e dedos compridos, para marcar o círculo em que a gude do adversário seria apanhada.

 Ninguém sabia como, e de repente todos mudavam de jogo, às vezes no mesmo período de férias. Quando era época de pião, os buracos de gude ficavam abandonados e o bamba era quem  colocava o pião na unha para rodar, e o super bamba era quem pegava ele no ar, na unha! Os menos destros ficavam maravilhados e algumas vezes se machucavam na tentativa de imitar. No circulo riscado no chão o pião de ponta de aço rachava os outros ao meio. Para não perder um bom pião, valia trocar por um mais ordinário, na hora de levar a porrada.

 Passado o tempo do pião, agora eram duplas batendo tampinhas de refrigerante desamassadas, nas paredes do beco. Eram as “fichas”, com tampinhas do guaraná e gasosas da  Fratelli Vita . Ganhava quem rebatesse mais perto da ficha do adversário. Apostava-se carteiras de cigarros  vazias, alisadas e bem dobradas. O papel  que envolvia os cigarros era cuidadosamente dissolvido na água,  e a fina  película de alumínio que ficava era utilizada para formar enormes e pesadas bolas, as maiores chegando a ter vinte centímetros de diâmetro! Era uma espécie de troféu.

 O Astória valia menos, Continental um pouco mais, e  “Roliude” já era  um valor razoável. Cada garoto tinha no bolso o seu maço de carteiras  , e quando  chegavam fumantes de fora ia ver se não traziam “Malboro” ou “Luquistrique”: valiam três “Roliude”! O maço  aumentava quando se achava carteira vazia, ou diminuía  perdendo na “ficha”.

  Passada a época das “fichas”, agora o que vale é  “triângulo”. Cada  garoto já carrega o seu canivete ou estilete.  Procurava-se no beco um lugar que fosse mais consistente, riscava-se  no chão dois triângulos separados , no arremesso  tentava-se cercar o outro traçando linhas a partir do ponto onde se fincou o estilete. Se este não fincar, perde-se a vez. A grande destreza era fazer o canivete rodopiar no ar antes de fincar no chão. Iniciava o jogo quem fincasse mais próximo de uma linha riscada no chão.

 Já esquecemos o triângulo, agora é tempo de “setas” : um  prego  afiado, três ou mais penas de galinácea e cera de abelha para dar  peso e segurar o prego nas penas. E lá se vão todos procurando portas e janelas no beco para treinar a pontaria e disputar pontos nos alvos.

 Chegou a época de empinar arraias : talisca de bambu, cola, papel de seda e linha Urso número zero. Pequenas ou grandes, sempre coloridas e longos rabos de retalhos de pano. Algumas tinham linhas “temperadas” com pó de vidro e goma arábica, para cortar  a  dos outros. Quando isto acontecia, era a festa para a molecada, que saía correndo atrás da arraia .

 

Até o Dr. Ruy Espinheira fez uma arraia “Couro de Boi” que maior nunca se viu. Todos paravam para ver e pediam para dar uma puxadinha na linha para sentir a força, ou para colocar um “telegrama”, que era um pedaço de papel que  subia na linha até a arraia.

 Como o beco era muito pequeno para empinar papagaio, nós fomos para a Praça do Obelisco.

 


Acho que ficamos lá por muitos anos, pois  quando voltamos ao beco ele estava calçado, as paredes pintadas e as rodas  dos carros passando por cima da nossa infância.

 Eduardo Sarno

set/2019

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