O BECO LÁ DE CASA (1)
- crônicas poçõenses -
O beco entre nossa casa e o Cine
Glória era o meu local preferido para as brincadeiras.
No chão do beco havia três
pequenos buracos, enfileirados como as Três Marias no céu. Ali brincávamos
de bola de gude, nas tardes intermináveis.
O ganhador tinha de conquistar
os três buracos na seqüência, afastando
as gudes dos adversários. Às vezes, com rolimãs de aço, tentava-se quebrar as
bolas de gude dos outros meninos. Era admirado quem fosse maneiroso para
segurar as bolas de gude, ter boa pontaria
e dedos compridos, para marcar o círculo em que a gude do adversário
seria apanhada.
Ninguém sabia como, e de repente todos mudavam de jogo, às vezes no
mesmo período de férias. Quando era época de pião, os buracos de gude ficavam
abandonados e o bamba era quem colocava
o pião na unha para rodar, e o super bamba era quem pegava ele no ar, na unha!
Os menos destros ficavam maravilhados e algumas vezes se machucavam na
tentativa de imitar. No circulo riscado no chão o pião de ponta de aço rachava
os outros ao meio. Para não perder um bom pião, valia trocar por um mais
ordinário, na hora de levar a porrada.
Passado o tempo do pião, agora eram duplas batendo tampinhas de
refrigerante desamassadas, nas paredes do beco. Eram as “fichas”, com tampinhas
do guaraná e gasosas da Fratelli Vita .
Ganhava quem rebatesse mais perto da ficha do adversário. Apostava-se carteiras
de cigarros vazias, alisadas e bem
dobradas. O papel que envolvia os
cigarros era cuidadosamente dissolvido na água,
e a fina película de alumínio que
ficava era utilizada para formar enormes e pesadas bolas, as maiores chegando a
ter vinte centímetros de diâmetro! Era uma espécie de troféu.
O Astória valia menos, Continental
um pouco mais, e “Roliude” já era um valor razoável. Cada garoto tinha no bolso
o seu maço de carteiras , e quando chegavam fumantes de fora ia ver se não
traziam “Malboro” ou “Luquistrique”: valiam três “Roliude”! O maço aumentava quando se achava carteira vazia, ou
diminuía perdendo na “ficha”.
Passada a época das “fichas”,
agora o que vale é “triângulo”. Cada garoto já carrega o seu canivete ou
estilete. Procurava-se no beco um lugar
que fosse mais consistente, riscava-se no
chão dois triângulos separados , no arremesso tentava-se cercar o outro traçando linhas a
partir do ponto onde se fincou o estilete. Se este não fincar, perde-se a vez.
A grande destreza era fazer o canivete rodopiar no ar antes de fincar no chão.
Iniciava o jogo quem fincasse mais próximo de uma linha riscada no chão.
Já esquecemos o triângulo, agora é tempo de “setas” : um prego afiado,
três ou mais penas de galinácea e cera de abelha para dar peso e segurar o prego nas penas. E lá se vão
todos procurando portas e janelas no beco para treinar a pontaria e disputar
pontos nos alvos.
Chegou a época de empinar arraias : talisca de bambu, cola, papel de
seda e linha Urso número zero. Pequenas ou grandes, sempre coloridas e longos
rabos de retalhos de pano. Algumas tinham linhas “temperadas” com pó de vidro e
goma arábica, para cortar a dos outros. Quando isto acontecia, era a festa
para a molecada, que saía correndo atrás da arraia .
Até o Dr. Ruy Espinheira fez uma arraia “Couro de Boi” que maior nunca
se viu. Todos paravam para ver e pediam para dar uma puxadinha na linha para sentir
a força, ou para colocar um “telegrama”, que era um pedaço de papel que subia na linha até a arraia.
Como o beco era muito pequeno para empinar papagaio, nós fomos para a
Praça do Obelisco.
Acho que ficamos lá por muitos anos, pois quando voltamos ao beco ele estava calçado, as
paredes pintadas e as rodas dos carros
passando por cima da nossa infância.
Eduardo Sarno
set/2019
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