31 maio 2009

O Escritório do meu pai




Ficava no fundo da Casa Sarno e para alcançá-lo, despertávamos a ira do enorme cão policial que ladrava desesperadamente, preso à corrente. Eu me esforçava por acreditar que a corrente era boa e forte, e que a chumbada na parede era sólida.
O escritório era comprido, acanhado mesmo, sem nenhum luxo. Tinha um compartimento de depósito ao fundo, com uma mesa, onde ficava a garrafa de garapa, que eu ia levar todas as tardes. Até garapa de café minha mãe fazia e meu pai tomava. Era pecado capital esquecer de levar a garapa de meu pai.
O que impressionava no escritório era o cofre, um enorme Luso-Brasileiro: verde com filigranas douradas, com uma porta tão espessa, que me dava idéia de solidez das coisas de meu pai, que trago até hoje na lembrança. Transmitia também uma impressão de poder, que eu atribuía a meu pai, porque ele é quem abria e fechava o cofre, manuseando as chaves e o segredo de maneira habilidosa.
Às vezes o cofre ficava aberto e eu via as gavetas e as gavetinhas, e me assaltava um temor, de que os tesouros e segredos que certamente haviam ali fossem roubados.
A escrivaninha era grande e alta, com tampo corrediço de fechar, cheia de escaninhos, sempre repletos de papel. Meu pai, atrás dela. Não era visto de imediato por quem entrava, e isso contribuía para eu tivesse uma sensação de mistério ao entrar ali.
Fazia-o todos os dias para levar a garapa, dar os recados ou pedir dinheiro. Nestas ocasiões ele não precisava abrir o cofre, tirava um maço de notas do bolso e perguntava “-Quanto precisa ?”. Claro, modestamente eu nunca pedia mais que um mil réis.
Ao lado dele, mais duas escrivaninhas, uma que ele ocupava quando estava recebendo alguém, e a outra com uma enorme máquina de escrever Olivetti.
Durante certa época, era Ada, minha irmã, que ficava ali, pois estudava contabilidade, e estava ajudando e aprendendo. Em frente, duas cadeiras e um pequeno sofá de dois lugares,com assento e encosto de madeira, esta, de tirinhas, e detalhes discretos no espaldar e nos braços. Feito de vinhático, provavelmente por algum marceneiro escravo em tempos passados, era o repositório natural e constante de bundas humildes e nobres, civis e eclesiásticas, municipais e estaduais e quiçá federais!
Na parede, uma enorme gravura desenhada por O. Puccioni e impressa nos estabelecimentos Benelli e Gambi (Firenze), tendo no centro o Rei Vitor Emanuel II (1820-1878) e em volta diversas cenas e alegorias sobre a unificação da Itália e a campanha de Garibaldi. Para mim, era como se a Europa ainda fosse medieval e que meu pai tivesse intimidade com reis. Só depois vim a saber que o Reino quase tinha sido abolido por Mussolini.
Às vezes ia com meu irmão José trabalhar no escritório. Era para colar dinheiro velho em folhas de papel celofane e depois recortar. Isto feito, o dinheiro era trocado por novo na coletoria.
Naquele escritório não só eram resolvidos negócios da loja e particulares, como também os da Igreja e do Estado. Católico praticante e virtual conselheiro do pároco Monsenhor Honorato, meu pai tratava ali de assuntos como a construção da igreja nova, a Festa do Divino Espirito Santo, a hospedagem do pregador da festa ou a vinda do Bispo.
De nacionalidade italiana, meu pai não era eleitor nem candidato, mas nenhum prefeito queria fazer nada sem consultá-lo e receber seu apoio. Desde a construção do Ginásio, até a instalação da Companhia Telefonica de Poções ou decidir por onde passar a variante da Rio - Bahia , era ali que tudo se discutia.
Durante todo o dia era interminável a vinda de pessoas para resolver problemas. Eram empréstimos, pagamentos de contas, pedidos de créditos ou simples “dedos” de prosa.
Vinham representantes de firmas de São Paulo – ou viajantes, como eram chamados - pessoas da roça , pessoas da cidade, sendo alguns mais assíduos, como Otávio Curvelo e o padre Honorato. Era um escritório popular e democrático, cívico e religioso.
Enquanto manuseava promissórias, duplicatas e notas fiscais, meu pai via pela janela do escritório a parreira no pátio da loja. Não dava muita uva, mas certamente dava muito prazer ao meu pai poder vê-la, recordando sua terra Mormanno.

Eduardo Sarno
Maio/97

Um comentário:

  1. elisa5.6.09

    Foi lá que aprendi sozinha, mas com o aval dele, a datilografar na máquina Olivetti.
    Ele autorizou e eu aproveitava os horários em que ele não estava no escritório para , com um manual ir seguindo a lição do dia.

    A pensar que hoje as crianças já nascem digitando, a gente fazia curso e até tinha escola de datilografia.....

    O passado tem este poder, além de nos fazer reviver, nos faz pensar no quanto o mundo mudou!!!

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