31 maio 2009

A Loja dos Sarnos

Era a loja do meu pai e dos meus tios. A firma foi fundada em 1896. A primeira loja, no tempo de tio Chico e Vicente Sarno, era na atual Rua da Itália, onde mais tarde ficou sendo a casa de tio Emílio. Na frente era a loja e atrás a morada. A loja teve mais mudanças do que evolução. Muito semelhante à cidade de Poções, na Bahia .
Com o tempo foram chegando os outros irmãos de Vicente: Camilo, Valentim, Luis, Emilio, Rosina, Corinto, e o primo Vicente (Orrico) Sarno . E todos moravam em quartos nos fundos da loja.
Tudo muito prático, mas não muito cômodo. Era o inicio do século, Poções ainda era uma cidade muito pequena e as estradas estavam por fazer. A luz era candeeiro e a água trazida por aguadeiros. Eles podiam pagar algumas regalias, mas tinham limitações da própria época. A farinha de trigo para fazer o “spaghetti” chegava muitas vezes estragada da “Bahia”, como todos chamavam Salvador.
A loja foi transferida depois para um sobradão na praça, o único da cidade. Era a época da Segunda Guerra e, apesar de italianos, continuaram merecendo a fidelidade da clientela.
Uma parte do sobradão desabou com uma enchente e a loja passou para o outro lado da praça, ocupando um imóvel que havia sido de Giuseppe D´Andrea, que tinha se mudado com a família para Jequié, inconformado com a insegurança trazida pelos jagunços.
Mas nem assim a loja ficou livre das enchentes. Quando o açude ameaçava estourar, éramos acordados de madrugada para ajudar a transportar as mercadorias para nossas casas, que ficavam em lugar mais alto, na rua da Itália. Era uma fantasia para nós vermos as casas atulhadas de mercadorias as mais variadas. Convivíamos durante algum tempo com pilhas de tecidos, caixas de chapéus e sapatos, perfumes e carretéis.
O auge da loja foi quando teve vitrine, vendia secos e molhados, tecidos e ferragens.
Tinha de um tudo, e quando não tinha dava-se um jeito.
Para quebrar a monotonia do trabalho no comércio, os tios em geral, e Valentim em particular, eram chegados a uma pilhéria como a história de que havia chegado um produto novo fazia o freguês cheirar amoníaco.
Mas tudo terminava bem, eles não perdiam nem a piada nem o freguês nem o amigo.
Naquela época quem queria um terno comprava o tecido na Casa Sarno e ia na alfaiataria de Otoniel, no Beco dos Artistas encomendar o feitio. Um dos fregueses era o sr. A.S. de Iguaí, que sempre comprava com Valentim.
Baixinho, mal passando da altura do balcão, o Sr. A.S. pedia dois metros e meio de tecido para fazer o terno.
Valentim, com o jeitão dele dizia bem alto, já provocando:
"- Mas para você meio metro serve !"
Nas prateleiras superiores da Casa Sarno ficavam as enormes caixas redondas dos chapéus "de massa", como eram conhecidos, para diferenciar dos chapéus "de palha" .
Quando não tinha o chapéu de número adequado para a cabeça , Valentim colocava a mão aberta na nuca do freguês e ajustava o chapéu diante do espelho .
"- Olha, este aqui dá bem justo!" ...e embalava o artigo !
No depósito da Casa Sarno tinha um estoque de escarradeiras esmaltadas, já em desuso. O esmalte estava corroído e Valentim então passou uma tinta e vendeu como cuscuzeiro.
Num sábado, que era o grande dia, um mateiro comprou o tal do "cuscuzeiro" e no sábado seguinte já entrou direto para falar com Valentim:
" Olha aqui seu "Valintim" , o senhor me vendeu um cuscuzeiro ou um chuveiro ? olha quanto buraco !!"
Em outra ocasião Valentim vendeu 5 calças grandes para seu L., pai de M. casada com M.S..
Quando ele chegou em casa a esposa, D. B. estranhou, mas ele argumentou, convencido:
"- Mas Valentim me garantiu que eu ia engordar !!"
Era o tempo das boas prosas, da chegada dos viajantes contando novidades, abrindo catálogos no balcão, fazendo todos sonharem com São Paulo, que parecia que nem era Brasil.
Flop, flop,flop, eram as peças de tecido sendo abertas em cima do grande balcão de madeira, para a freguesa examinar. Ela, que havia apontado timidamente para uma peça, agora via quatro ou cinco já abertas em cima do balcão. E o primo Irineu querendo abrir mais. E a freguesa não sabendo como dizer não, terminava por escolher uma metragem de fustão.
Mas se não tivesse o estampado desejado, Irineu não titubeava. Gentilmente pedia licença para ir ao depósito e ia à vizinha loja de Ed Porto Alves, de onde voltava com três peças no ombro. Uma sempre terminava por agradar à freguesa.
Muitas histórias se passaram pelos três grandes balcões de madeira. Ali se debruçavam viajantes, prostitutas, senhoras e senhoritas e mais os doutores da medicina ou do direito. E mais o padre Honorato. Entrava de repente e saia mais de repente ainda. Se encontrava algum garoto era certo que este levaria um beliscão na bochecha. E ao mesmo tempo perguntava "- Como vai seu pai, menino ?" Nem o menino podia falar, pela dor na bochecha, nem o padre podia escutar, porque era surdo.
Era lá na loja que chegava primeiro a revista “O Cruzeiro”. Podíamos ouvir o mundo através do rádio, mas ver só nas revistas ilustradas. Folheávamos com avidez – os mais velhos primeiro – sentindo aquele cheiro de papel impresso que tinha a magia de nos transportar para um mundo inacreditável.
Foi nas páginas de “O Cruzeiro” que vimos “Baby” Pignatari usando sandálias havaianas. Algum tempo depois o primo Fidelão apareceu usando sandálias iguais. Não foi um escândalo. Foi uma revolução cultural. Até aquela data ninguém considerado rico havia saído à rua com o pé à mostra. Ainda mais aquele pezão brancão !
Aos sábados os mateiros e catingueiros enchiam a loja. Da capa colonial ao bacalhau eles compravam de tudo. Os balconistas recebiam reforços: meu pai vinha do escritório e nas férias minhas irmãs ,meu irmão José Fidelis e os primos Fernando, Pietro e Lulu iam de casa para ajudar.
Com o tempo a feira dos sábados, que era só de frutas, verduras e coisas da roça, foi começando a vender o que se vendia na loja. Os marreteiros chegavam com confecções prontas e variadas. Já se via ferragens, sombrinhas e chapéus. A feira foi crescendo.
Aos poucos o movimento da loja foi caindo. Os sócios foram envelhecendo e indo para Salvador. A firma foi desfeita, ficando apenas a loja de Salvador, que passou de tio Vicente para o filho Chico.Tio Camilo, tendo passado por Jequié, ficou depois sendo sócio de Chico. Era a afamada loja do Guindaste dos Padres, no Comércio. Na fachada ainda está escrito "Sarno" e lá dentro ainda tem Sarno: os netos de Vicente e de Camilo.
Em Poções, até hoje ainda existe, na boca do povo, a loja dos Sarnos.

Eduardo Sarno
22.jan.2002

3 comentários:

  1. Parabéns pelo excelente blog que resgata a história dos imigrantes italianos que tanto fizeram por nosso país. Vou colocar um link para sua página em meu site www.familia.demarchi.nom.br

    ResponderExcluir
  2. Eduardo, só porque você não ajudava na loja, pois era muito preguiçoso, não colocou o nome de seu irmão que sempre estava lá aos sábados durante as férias escolares (e que adorava a tarefa, apesar de cansativa). Exijo correção. Faça justiça! rárárá. José Fidelis Sarno

    ResponderExcluir
  3. Eu trabalhava na "putia" de Giovanni, engolindo pó de serra e vcs cheirando perfume !!! Colocarei vc lá, aos sábados . abs

    ResponderExcluir