19 setembro 2009

As Flores

Os italianos, apesar da origem urbana, tinham forte ligação com os produtos do campo e ficavam embevecidos com a extensão da terra, sua qualidade e consequente profusão do verde em Poções
Refinados, procuravam adequar estes fatores para um cultivo doméstico de plantas variadas. Fazia parte da atividade de lazer dos meus tios o cuidado com as plantas. Da entrada da casa até o fundo do quintal, passando pela sala, copa e ampla área de serviço, tudo era uma ornamentação natural do verde.

Caqueiros, canteiros, caixotes da Casa Sarno, tudo servia para acolher plantas. Nas nossas casas havia dois tipos de quintais: o primeiro era das plantas ornamentais, junto da área de serviços, onde as domésticas lavavam as roupas, “areiavam” (1) panelas e cozinhavam no grande fogão a lenha.
O segundo, separado por um muro, era o quintal das árvores frutíferas, onde se jogavam os restos de comida, que eram ciscados pelas galinhas.






Mesmo não dispondo do recurso das cores, o fotógrafo registrou a exuberancia das flores

(casa de Ruy Espinheira e depois Américo Libonati)

Rosa Alba e Maria Teresa Sarno
No nosso quintal das plantas ornamentais havia algumas árvores frutíferas, que faziam sombra, e tudo o mais eram flores. No correr do muro estavam as rosas. As “Branca de Neve” eram solicitadas para se fazer chá. A “Vermelha” deslumbrava pela beleza, a “Cor de Rosa” pela delicadeza e a “Rosa Menina” pela mimosidade. Na poda, porque as pessoas pediam, os galhos eram sempre guardados para fazer muda.
Ao lado das rosas atracava-se ao muro a planta que achávamos a mais curiosa: a “Meia Noite”. Crescia pelas laterais parecendo da família dos cactos e dela desabrochava uma linda e grande flor branca, mas como justificava o nome, à meia noite.
Entre as janelas do quarto de meus pais e as da sala ficava um jardim cimentado com um círculo no meio e complementos geométricos nos lados.


Aninna Sarno com netos e sobrinhos.
Ali ficavam as “Gérberas” e eventualmente alguma outra planta. Ao lado, trepando por um pequeno caramanchão, o encanto olfativo do nosso jardim: o “Estefanote”, ou “Jasmim de Madagascar”. Brancas e pequeninas, as florzinhas exalavam um perfume inigualável. Não por acaso o seu nome de origem grega – “stephanotis” – significa “próprio para fazer coroas”. Em 1955 no casamento de Ada, minha irmã, elas foram usadas para o “bouquet” da noiva. (foto)
Parasitária do pé de laranja-flor vegetava delicadamente uma orquídea cujas flores nos encantavam. Meu pai tinha por ela um cuidado e admiração especial, fazendo questão de mostrar a todas as visitas.
Em seguida, alinhados em caixotes de madeira trazidos da loja estavam os cravos de várias cores ,que meu pai cuidava com conhecimento e gosto. Meio dia, ao chegar da loja ele ainda encontrava tempo para ir, de chapéu, suspensórios e manga de camisa dar uma olhadinha nos cravos: uma amarradinha aqui, uma folha estragada ali e já estava na hora do almoço. E Dona Aninna, com a macarronada na mesa, não gostava de chamar duas vezes.
Mas ela também tinha a sua preferência: eram os “Copos de Leite”, de densa folhagem verde e belíssimos envelopes brancos com uma haste amarela no interior. Havia um canteiro grande só para eles e, como veremos, tinham uma destinação sagrada. Ao lado deste canteiro estavam as palmeiras ornamentais, baixas e o “Bambu Chinês” ao qual eu tinha predileção, pela sua beleza e leveza.
Por todo lado havia plantas e flores. Dentre estas lembro de um enorme “Cróton” que não resistiu ao olhar do Padre Honorato e murchou. Todas as flores bonitas que ele via dizia: “-Mande para a minha igreja”. E as pessoas receavam que elas murchassem.
Havia ainda “Sorriso de Helena”, “Violetas”, o “Hibisco” ou “Graxa de Soldado”, as “Palma de Santa Rita” -também destinada a rituais sagrados- as “Hortênsias”, as “Margaridas”, os “Gerânios”, as “Samambaias”, os “Alfinetes” ou “Aspargo Ornamental”, a “Sete Léguas”, trepadeira de flores cor rosa-claro, abundante na região, as “Avencas”, que requeriam especial cuidado, os “Antúrios”, o “Amor-Agarradinho”, a “Begônia Imperial” e as plebéias, o “Caládio”, a “Boa Noite”, pequeninas e prolíferas, o “Coléu”, as “Dálias”, e as delicadas “Angélicas”.
Para molhar este mundo multicolor havia um grande tonel revestido internamente de cimento, onde era colocada a água trazida do açude pelos “camaradas”, como eram chamados os aguadeiros. Para maior comodidade foi construída uma cisterna no quintal de baixo. A água era salobra mas servia para molhar as plantas. Com a chegada da água encanada e a construção de tanques elevados usávamos a mangueira, que tinha um esguicho regulável na ponta. Tínhamos aprendido que nunca se molhava planta com o sol quente. No final da tarde, para cada tipo de planta dávamos o esguicho apropriado. Quando era uma planta delicada a água saia como uma nuvem úmida e os raios de sol brincavam de arco-íris nas suas gotículas flutuantes. Nestes momentos mágicos, se das folhagens surgissem gnomos e duendes, nossa imaginação absorveria isso como um fato comum.
( Elisa Maria Sangiovanni e a gérbera)
Neste mundo de plantas e flores, algumas eram mais destacadas pela utilidade ou pelo inusitado. Na casa de tio Valentim, por exemplo, crescia uma grande flor chamada “Trombeta de Anjo” que nas nossas brincadeiras usávamos para assoprar e estourar, como se faz com sacos de papel. De uma planta tipo “Orelha de Gato” tirávamos uma folha que era pregada na parede e ali ela se desenvolvia, gerando novas folhas. Da parreira de uva e do pé de mamão usávamos as folhas como molde, recobrindo de cimento e, quando secas pintávamos de verde. Um arame era encaixado no cimento, para poder pendurá-las na parede, como decoração. Uma outra folha, toda cinza, de uma planta tipo “Cinerária”, era colocada dentro de um livro para que ficasse ressecada e dura. No período das brincadeiras químicas tentamos fazer perfumes e tintas com as rosas, mas foi um fracasso total.
Mas as flores nativas não eram desprezadas. Os lindos cachos de flores amarelas do “Canjuão” eram usados nas “corbeilles” que enfeitavam os eventos profanos no Clube Social União das Classes, quando, por exemplo, Aurora Sarno e outras senhorinhas locais organizaram desfiles de trajes típicos italianos, vindos de Salvador por empréstimo da família Galeffi.
(Noemia e Maria Teresa Sarno-traje típico)
O dia de glória, para aquelas modestas flores dos jardins domésticos, era quando cumpriam a importante e sagrada missão de enfeitar os andores e o altar.
A decoração era feita pelas mãos de senhoras e senhorinhas de Poções - Maria Teresa Schettini, Ida Benedictis, Josepina Sarno, Anna Maria Sangiovanni, Araci Schettini, Mavione Fagundes, Zina Paradela, Celeste Pinto, Laurita Amaral e mais uma quantidade imensa de voluntárias zelosas.
Os andores do Divino, de N.S. de Fátima, de Santo Antonio, São José , São Geraldo e São Roque, eram carregadas nos ombros de cidadãos católicos como João Lago, Fernando Schettini, Irineu Sarno, Valentim Sarno, Corinto Sarno, Américo Libonati e outros, devotamente vestidos de impecáveis paletós de linho branco.



(1)Valentim Sarno, Corinto Sarno e Américo Libonati- Geraldo Sarno com o turíbulo.

(2) João Lago e Fernando Schettini

De todas as flores só uma minha mãe não gostava. Era o “Cravo de Defunto”, de tons escuros e violáceos. Era até compreensível, pelo presságio que trazia no nome. Mas, como bom jardineiro, meu pai não tinha preconceito nem superstição e a incluía entre as suas protegidas.
E toda semana a velha Marcolina, de rosto enrugado pela idade, passava lá em casa para um dedo de prosa, tomar um cafezinho, ganhar alguns mantimentos e retalhos de pano, com os quais fazia as suas flores artesanais. Eram flores bonitinhas, bem feitas, mas, para nós, acostumados a conviver com a exuberância da natureza, ali mesmo na nossa casa, nada poderia imitá-la.
(1) Usava-se uma bucha com areia bem fina, que era encontrada perto de um poço antes do açude velho. Servia tanto para as panelas de alumínio como de barro. Dizia-se “ariar”.

Eduardo Sarno
Setembro.98

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