10 junho 2009

Rua da Itália

Rua da Itália
Não foi sempre assim que ela foi chamada. Antes era Rua João Pessoa. E a rua, com esse nome, não era calçada. Os passeios eram altos e com a chuva a enxurrada descia forte, e tentar detê-las, com nossas barragens de barro improvisadas no meio-fio era um trabalho que demandava todas as nossas forças, depois das aulas na Escola Alexandre Porfírio.
Toda meninada participava da construção da barragem, trazendo o barro, pedaços de madeiras e pedras. Olhares atentos e mãos ágeis tapavam de pronto os rompimentos que eram constantes.
A enxurrada sempre vencia, mas nem por isso conseguia tirar o nosso prazer. E era um sempre recomeçar, mesmo que, covardemente, esperássemos o final da chuva, quando a enxurrada era menor. Além disso, tinha os barquinhos de papel.
Exemplares antigos de “A Cigarra” e “O Cruzeiro”, revistas ilustradas, forneciam as páginas que eram usadas para confeccionar os barquinhos. Dobra aqui, dobra ali e lá se ia o barquinho descendo na enxurrada. Nas laterais a figura do “Amigo da Onça” ou Getulio Vargas, todo engravatado, apertando a mão de alguém. O destino era o grande bueiro coberto de trilho na esquina do Beco dos Artistas , no final da rua, onde o barquinho desaparecia.
Na rua, as únicas casas de brasileiros era a do Pastor e a de Miguel Lopes, onde antes já havia sido residência do coletor Dr. Macedo e posteriormente do Juiz Dr. Eurico Alves Boaventura. A maioria das casas era de italianos, meus tios. Vivíamos em clima de intimidade indescritível, pois podíamos entrar em qualquer casa, sem cerimônias, principalmente nos quintais.
Depois veio o calçamento, a grande realização do Prefeito Dr. Aloísio Euthálio da Rocha. Para nós, foi o começo do fim. Adeus enxurradas com barragens. Adeus fogueiras de São João, quando o sufoco gostoso da fumaça nos fazia arder os olhos, e nem por isso deixávamos de ser felizes.
A Rua da Itália era passagem obrigatória da procissão e da Cavalhada na Festa do Divino. E aos sábados, desde cedo por ali passavam os mateiros e catingueiros, indo e vindo para a feira. Durante toda a semana era a vez de Arlindo Aguadeiro, com seu jegue e carotes trazendo água, vindo de Cachoeirinha, distante uma légua boa. E só não passavam os enterros porque o cemitério ficava do outro lado da cidade.
Na rua tinha o Cine Glória, o Fórum, a Tipografia e a Igreja Batista, que era chamada “dos crentes” ou de seu Alcides Batatinha, que era o pastor.
Com o calçamento, o passeio ganhou ladrilhos, colocados pelos moradores. E passear por ele nas noites frias, depois do jantar, era um prazer sem limites. Meu pai o fazia constantemente, e muitas vezes com minha mãe.
No começo da noite, o ponto do papo era normalmente a varanda em frente, de tio Valentim, ou a nossa. Lá marcavam encontro os amigos e os primos. Um deles, Fidelis do Arroz, sempre conversava sem tirar o cigarro da boca, e nos deixava tensos, aguardando a hora em que aquela enorme cinza iria cair na sua roupa, o que não acontecia. Irineu passava o dia procurando uma piada para contar à noite. E, entre risos, o papo se estendia noite adentro sob o céu estrelado.
Vultos trajando capa colonial passavam por nós. Rostos avermelhados, chapéu de massa na cabeça, lá se iam os italianos jogar "Três Sete” na garagem da casa de tio Luis. Entre eles, inconfundível, José Domarco, de chapelão e capa. Como iam, vinham, e já era então a hora do silencio se instalar na rua.
Brás Labanca, o dono do motor da cidade, depois que dava três sinais, apagando e acendendo as luzes, desligava a energia, deixando a rua e a cidade às escuras.
Como se num teatro, surgem dos bastidores os guardas noturnos, atores da madrugada. O som do apito lamuriento já ouvíamos com a cabeça no travesseiro e, ao mergulhar naquela sonolência, tínhamos uma sensação de segurança, conforto e eternidade.
A placa nova chegou num dia de muita festa: "Rua da Itália". No discurso, o Prefeito falou da gratidão da cidade pelo trabalho dos italianos para o progresso de Poções, que também já foi chamada de Djalma Dutra; a placa está lá até hoje. Quem saiu foram os italianos. Imigraram para Salvador, desta vez atrás dos filhos, netos e bisnetos.

Eduardo Sarno
Março/2001

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