OS
PALAVRÕES E OS ITALIANOS
* crônicas poçõenses *
Minha tia Ana Maria Sangiovanni
entrou correndo esbaforida em nossa casa
e foi encontrar minha mãe na cozinha
abrindo massa para macarrão, pois era quinta feira:
-
Dona Annina, corre que estão xingando Dr. Ruy Espinheira de “bacharel”, pelo
alto-falante.
Era
Ângelo Neto fazendo suas perorações políticas para o povo da cidade e, sem
querer, assustando dona Ana.
Chegada em Poções a pouco tempo da Itália, ela ainda
não estava familiarizada com todas palavras, carecendo portanto da explicação que
minha mãe lhe deu, que “bacharel” era o mesmo que advogado.
Por
acaso ou de propósito estas peças lingüísticas eram sempre pregadas aos recém
chegados. Foi o que ocorreu com Antônio Libonati que, tendo sido recebido em
Salvador pelos primos Pedro, Élio e Benito, foi almoçar na casa de Vicente
Sarno, no Politeama de Cima, 22. Ensinaram para ele que açucareiro em português
era “pinico”, e ele não vacilou em pedir ao tio que passasse o “pinico”!...
Mais
precavida, tia Lelinha Pithon Sarno , esposa de Tio Vicente, achou por bem
avisar logo a tia Ana assim que ela chegou a Salvador : “- Se perguntarem como
se chama “bolsa” em italiano não
responda !” A advertência foi oportuna porque assim que conheceu tia Ana,
Juracy de Fidélis insistiu para que ela dissesse como se chama “bolsa” em
italiano. Minha tia, sob o olhar preocupado de tia Lelinha aprendeu a lição e
se recusou a dizer “bolsetta”.
Os
nossos tios eram práticos em um palavrão, e o carro-chefe era cazzu , que significa membro viril (Rohlfs),
o vulgar caralho ou pica, com a
variante capo de cazzu, ou seja, cabeça
de pica. Mas, se nós ousássemos
dize-lo levávamos logo um tapa. Eles falavam com tanta naturalidade e
freqüência que ficava difícil aceitar que nós também não o pudéssemos fazer.
Mas,
contraditoriamente, o ambiente familiar era muito respeitoso e mesmo uma
simples porra era objeto de
recriminação e tapa na boca. Bosta e merda também
nem pensar, aliás, pensar e fazer podia, o crime era dizer.
Segundo
uma versão divulgada por Irineu de Valentim Sarno, numa tarde nublada Américo
Libonati ia descendo a Rua da Itália e já estava no meio da praça, indo para a loja de
ferragens quando cruzou com José Schettini e, sorridente, comentou :
“Giuseppe,
guarda come stai lampando!”( “José, veja como está relampejando!”)
Como
o José não estava no seu dia de bom humor, respondeu :
“Lampando
sta il culo tuo, cazzu” ( “Relampejando teu cú, caralho.”)
Também
era muito usado a expressão fessa, (besta), com as variantes faccia de fessa ( cara de besta), fessa de mammata ( besta da mãe) ou fessa
de ziata ( besta da tia) e esses eram ditos por tios e tias. A origem da
palavra está no latim “fissus”, no sentido de vontade ou sentimentos
divididos. No dialeto trequinês “fezza”, feminino “feccia”, que significa vulgar, desprezível. No dialeto siciliano “fissa” é o órgão genital feminino, entre
outras acepções. A aplicação é lógica, pois tal órgão tem uma fissura,
abertura.
Daí
se referirem a uma coisa boba como “fessaria”
Quando queriam mandar alguém se danar a
expressão usada era va strafuta , também de uso familiar. Se em geral os xingamentos
são difíceis de serem localizadas em suas origens, em italiano é mais
complicado, porque são palavras ditas e nunca escritas, sendo que muitas delas
derivam do dialeto trequinês ou mormanolo. Assim, por aproximação, temos , do
dialeto trequinês, “vastà” que significa “chega, basta” e “frustafo” significando “vá embora”.Segundo
Rohlfs, 'strafuná' é distanciar-se,
dispersar.O que poderia ser traduzido pelo nosso popular 'se pique'.
As blasfêmias eram pouco ouvidas, mas a porca
miséria tinha os seus
usuários, e o seu sentido era reclamar da vida. Meu pai tinha predileção pelo
uso de “borrabota”, que não chegava propriamente
a ser um palavrão, mas a partir do significado de “mau engraxate” designa
indivíduo reles, desprezível. Outra expressão que sempre usava era “capadócio”, que apesar de suas
origens greco-latinas, pois se refere a uma província turca da Ásia Menor, não
tem em italiano a conotação que recebe em português : indivíduo acanalhado,
impostor, trapaceiro, parlapatão.
“Capotosta”,
também do dialeto trequinês, sempre teve
largo uso, e significa cabeça
dura, teimoso, obstinado. É uma palavra formada de capo, cabeça e tosta , obstinada.
Os
recém chegados da Itália também usavam o termo “brutto “(feio, desonesto, tolo) para se referir a pessoas que fossem
indelicadas ou praticassem ações que demonstrassem ausência de
sentimento.
“Abestalhado” ou “abestado” eram formas aceitas para o uso doméstico para
designar principalmente os meninos que, no conceito dos adultos, fizessem alguma
besteira ou “bestagem”, como
também era usado. Daí o uso que meus
tios faziam com freqüência do termo “bestalhão”
que, na pronúncia deles saia “ bestalhon”.
Minha
mãe tinha predileção de chamar minha irmã Noemia de “pamonha", quando ela teimava em ler revistas de foto-novela
durante os horários não permitidos. Derivado do tupi “pamu’ñ ã”, significa,
além de bolo de milho verde, pessoa mole, preguiçosa.
Certa vez estávamos na grande mesa da copa
almoçando, quando Betânia, uma meninota que tinha vindo da roça para ajudar nos
serviços de casa, olhou pela porta lateral que dava para a rua e disse à minha
mãe que ali tinha uma “burrega”. Como
minha mãe não sabia o que era não deu atenção. Minutos depois, ao passar pela
porta ela viu uma cabrita comendo as suas plantas. Aborrecida, chamou Betânia
de burrega e mandou que ela tirasse a cabrita de lá. A partir deste dia passou
a usar o termo para designar pessoas que ela considerava burras.
Outro
neologismo que surgiu em circunstâncias bem definidas foi na ocasião em que
algum órgão do Governo providenciou o peixamento do açude local com uma espécie
denominada “Tilapia Melanopleura”, cuja grande façanha era se alimentar de
detritos lançados às águas. A molecada não deixou por menos e passou a usar o
termo “xilaia” nos seus xingamentos mútuos,
com acepção indefinida mas certamente pejorativa.
E
assim a cultura do palavrão ia se difundindo e mesclando com as práticas locais e quando começávamos a ir para a
Escola Alexandre Porfírio, estávamos perto de receber o diploma de expressões
chulas...e bilíngüe !
Os
palavrões mais estranhos eram aqueles que na época não sabíamos o significado,
e os principais era “xibungo” ,
pederasta passivo, e “sacana”,
derivado do árabe “açaccó”, que
significa “aguadeiro” e que é usado para
designar o canalha, patife, entre outros. Mas, como funcionavam, fazendo com
que as pessoas ficassem retadas, o uso
era comum. Mas as palavras “retado”(
estar zangado) e “porrêta” (bom,
excelente) também não eram usadas socialmente.
Os
doidos, quando eram provocados pelos moleques eram catedráticos de palavrão. A
principal resposta, evidentemente, era que o apelido dele eqüivalia à “buceta”da mãe de quem o chamava. Mas
isso não intimidava os moleques, que queriam ouvir mais. E lá vinha “filho da puta”, que na verdade saia com
variantes por causa da pronúncia: “fi da puta”
ou “féla da puta”, pois a pressa e a
ignorância não permite classicismo.
Para nós a novidade era que também as doidas
sabiam um bom repertório de palavrões e era muito mais emocionante ouvi-las
gritar “vá tomar no cú, seus safados”,
do que os doidos.
Nas
paredes da Escola o que mais se escrevia era “pica” e “buceta”, às
vezes com ilustrações adequadas ao texto. “Xibiu”,
que nos garimpos mineiros significa diamante pequeno, em Poções era sinônimo de
“buceta”, que era representada por um
triângulo. O mesmo acontecia com a palavra “binga”, que em lugares mais discretos
significa isqueiro, mas aqui é “pênis”
mesmo, e chamar alguém de “tampa de binga” deixava
claro, de forma criativa, o significado.
Uma
outra expressão que também se adiantava numa explicação mais completa era “filho de puta com soldado raso” , ofendendo os brios das Forças
Armadas.
Às
vezes ainda não tínhamos nem a percepção exata do significado do palavrão, mas
a ênfase com que era dito já bastava para motivar uma briga. Era o caso de “viado”, (com “i”) cuja compreensão não era completa para todos
nós.
Xingar-nos
mutuamente de “corno” não fazia o
menor sentido, mas, apesar disso era usado. Os mais sabidos já faziam uma
ligação direta com os pais da pessoa a ser ofendida, tornando o sentido mais
lógico.
“Vai te fuder”, ou “estou
fudido” era de um caráter tão dúbio que nos confundia. Já compreendíamos
que “fuder” era uma coisa boa, e como
se podia querer mal a alguém mandando ele se “fuder” ? Como poderia alguém se “fuder” sozinho? E por que estar “fudido” era estar em uma situação ruim?
Alguém
tinha dito que “porra” significava
esperma, e não fazia sentido para nós que alguém gritasse “esperma” quando
estivesse zangado.
As
garotas, em absoluto não se permitiam dizer a mais simples “porra”, e quando ouviam dos meninos alguns
palavrões diziam “- Queta, ozado” e
no recinto sagrado do lar a chamada boca suja era lavada no tapa. Restava,
progressivamente, a escola, a rua e o bordel. Vitalina, dona da casa de
raparigas mais freqüentada tinha uma
fala rendilhada de palavrões.
Mesmo
com a circulação nos bordéis não havia novos palavrões. O rádio não se prestava
para isso e a televisão não existia. Só com a ida das primeiras levas de
ginasianos, para Jequié, no Colégio do padre Spínola – aquele que pegava nos
peitinhos das alunas fardadas dizendo: “-Escudinho novo, hem ?” ou para
Salvador, no Vieira, Salesiano e Maristas é que os horizontes lingüisticos se
ampliavam. Já se sabiam de nomes eruditos como “baitola, pederasta” ou “homossexual”.
Até de “franchona” já se comentava,
sem falar no “sessenta e nove”, mas
aí já é uma outra história, da prática e não da fala. Ou da prática do falo.
Foi
justamente em Jequié, em 1957, quando Pietro Pasquale Sangiovanni, o conhecido
Pepone foi fazer o exame de admissão que lhe perguntaram se ele já sabia “bater
punheta”. Inocente, respondeu que não e então lhe ensinaram um movimento de destreza com os dedos
indicadores e polegares alternando-se, num movimento sem fim, e disseram que isso era bater punheta. Na
sala de aula, depois de feita a prova, contente, Pepone querendo se enturmar
perguntou ao professor se ele já sabia bater punheta. Sem perceber o olhar de
incredulidade do professor ele, movimentando os referidos dedos disse sorrindo:
“- Eu já aprendi, professor, olhe só!”
Eduardo
Sarno
Outubro.98