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14 outubro 2009

O Café

Em Poções, no verão, as tardes quentes prenunciavam noites frescas. Na Rua da Itália, o ponto de encontro dos primos, depois do jantar, era a varanda de nossa casa ou a de tio Valentim.
O papo corria solto, com piadas contadas pelo primo Irineu (foto), gargalhadas e comentários os mais diversos. Nós estávamos de férias, todos chegados de Salvador, depois de um ano inteiro de estudos, alguns internos no Salesiano ou Marista.
Invariavelmente meu pai e minha mãe caminhavam pela calçada, e tio Américo e tio Luis às vezes vinham juntar-se a eles.
Quando terminava o passeio meu pai sempre parava para uma prosa com os sobrinhos. Um dedo de prosa, como se dizia.
Uma das vezes o assunto foi o café. Naqueles idos de 1950 o café era um assunto nacional, não só pelo volume de exportação como o fato de grandes quantidades terem sido queimadas, ou jogadas ao mar, para manter o preço. Criticava-se também o fato do Brasil não poder vender café diretamente à União Soviética, e ter de fazê-lo através dos Estados Unidos.
Meu pai explicava pacientemente, e com ar professoral, todos os detalhes do mercado do café, mas a discussão continuava. Ele então pedia um momento, entrava em casa e ia buscar o “dossiê do café”: um classificador onde estavam anotações, recortes e correspondência sobre o mercado do café. Ele então lia os documentos que confirmavam as suas afirmações e todos terminavam convencidos pelos fatos.
A firma Sarno & Irmãos tinha fazenda onde plantava café, e um armazém (foto-1948) onde comercializava o próprio e o adquirido, além de mamona, cacau, peles, etc. Tio Luis e tio Emilio gerenciavam o armazém, e eram “experts” em café, reconhecendo e avaliando os grãos de qualidade para a compra e beneficiamento.


Erotildes e Vitalino eram os “camaradas” de confiança que pegavam no pesado e deixavam tudo arrumado. Eram pilhas enormes de sacas de café e cacau. O transporte era feito no caminhão de Herculano.
Sempre nós íamos lá brincar e quando havia algum saco de cacau furado enchíamos os bolsos com as sementes e em casa conseguíamos fazer um chocolate caseiro, muito gostoso. Anos depois, ao tentar repetir o feito em Itacimirim, só consegui fazer um mingau lilás, logo apelidado de “chocogrude” e rejeitado por todos... menos pelo primo Pietro Sangiovanni, que comeu e achou delicioso !
Fidelão, filho de tio Emilio, e Fernando, filho de tio Luis, tinham uma brincadeira mais sofisticada: brincavam de Zorro em italiano!
No armazém, o cheiro das sacas de café e cacau era inesquecível, e do alto das pilhas ficávamos olhando as “catadeiras” ou "pianistas" (foto), mulheres que, sentadas em grandes bancos catavam os grãos. Erotildes e Vitalino subiam nas compridas mesas e despejavam os grãos, arrastando as sacas.
A firma Sarno vendia para Brandão & Filhos, e para isso tinham de estar em dia com as cotações nacionais e internacionais. Assim, era imprescindível para Corinto ouvir pelo rádio o noticiário do Repórter Esso, e a Rádio Nacional com as últimas novidades do cambio e das cotações.
Na década de 50, na Europa ainda havia as dificuldades do pós-guerra, e minha mãe fazia pequenos sacos de algodão , onde cabia um quilo de café em grão. Nós íamos levar ao Correio para postar para os parentes em Mormanno, na Itália. Quem nos atendia era Zulmerinda Duarte Curvelo, futura sogra de meu irmão José Fidelis.
Os italianos da família Leto, em Jequié, faziam o mesmo, postando para os parentes em Trecchina.
O café era torrado em casa. Meu pai trazia uma seleção dos melhores grãos, e colocava em um cilindro de ferro com uma manivela, para girar. No quintal havia o lugar apropriado para o encaixe do cilindro e o fogo era colocado em baixo. Dali o café já torrado ia para a máquina de moer, também manual, e esta era uma tarefa para nós, meninos.
Bule, chaleira e coador de algodão eram os utensílios usuais que completavam a feitura do café. O bule costumava ficar em cima da chapa quente do fogão a lenha. Por vezes usava-se a cafeteira italiana.
Minha mãe, muito econômica, e achando que o pó era tão bom que se prestava para isso, chegava a fazer café duas vezes com o mesmo pó, para desgosto e protestos de nós, consumidores familiares.
Certa feita meu pai trouxe amostras de café in natura para torrar, moer e coar dentro da melhor técnica, para degustação. Era uma encomenda importante para exportação. Desavisada, ou usando a sua visão econômica, minha mãe misturou com outros grãos... para render !
As visitas tomavam sempre um cafezinho bem passado, servido em bandeja de prata e xícaras finas de fabricação francesa ou japonesa, que ficavam na cristaleira da sala.
Para meu pai – não sei se invenção dele ou dela – minha mãe fazia uma “garapa” de café, gelada, que eu levava no meio da tarde quente para o escritório dele, na Casa Sarno. Ao que parece o meu pai apreciava, porque no dia seguinte a garrafa estava vazia.

Eduardo Sarno
27.07.08