Pietro Pasquale Sangiovanni (1947 – 2023)
Don Gargunza y Portales
Pepone
Pepo
Quando Pietro chegou em Poções, em janeiro de 1952, ainda era um ‘bambino’. Foi em uma manhã luminosa de verão, e ele chegou acompanhado pelos meus tios e pelo irmão mais novo Michelle.
A recepção festiva por parte dos meus pais e tios era complementada pelos grandes balões que a família trazia da Itália, do ‘Pastificcio D’Alessandro’, onde meu tio Francisquinho tinha trabalhado.
Corinto Sarno havia se empenhado com a vinda do ‘cognato’, inclusive enviando carta de recomendação à companhia marítima, para que as acomodações fossem as melhores, no vapor italiano.
Eles ficaram morando algum tempo em nossa casa, até que se mudaram para uma casa na mesma rua da Itália, em frente a José Schettini.
Os nomes semelhantes de minha mãe e da ‘cognata’ foram logo resolvidos, ficando a primeira com o apelativo ‘Anina’ e a segunda ‘Ana Maria’, ou tia Ana, para nós sobrinhos.
A língua portuguesa foi permeando o dialeto mormanolo e o italiano. Isso às custas, às vezes, de situações cômicas, como no dia em que tia Ana veio apressada procurar minha mãe, dizendo que no serviço de alto-falantes estavam chamando o Dr. Ruy Espinheira de ‘bacharel’ ! Com a explicação de que ‘bacharel’ é o mesmo que ‘advogado’, minha tia pôde suspirar tranquila.
Os momentos prazerosos das duas famílias eram às vezes intercalados com cenas de, digamos, violência. Uma delas foi quando, ao colar balões de São João na nossa sala de visitas, tive um desentendimento com Pepone. Segurei a tesoura, e ameacei feri-lo. Ele pediu desculpas, mas eu retruquei que era tarde, e dei uma estocada no joelho. Pepone reclamou, mas a cicatriz ficou para sempre.
A outra ação impensada foi quando, açulado pelos irmãos Espinheiras, dei um murro nas costas de tia Ana. Os Espinheiras alegavam que ela não era minha mãe e que portanto não poderia me deixar de castigo. Não é precido dizer que passei o resto do dia foragido, retornando apenas depois de longas negociações.
Fomos também contemporâneos na Escola Alexandre Porfírio. Pepone decorava com facilidade a tabuada. Era bom de matemática. Todos em fila declamavam os multiplicandos e os noveforas. Pepone brilhava, e eu gaguejava.
Na Escola, a discriminação se dava quando os outros nos chamavam de ‘gringos’, no caso de Pepone, e ‘fi de gringo’, no meu caso. Pepo não era tímido, ele era retraído. Mesmo na nossa turma, ele participava das brincadeiras, mas era muito desconfiado.
No Coreto, certa vez, Pepo, ao pular, teve um pequeno arranhão na perna. Inocentemente Heraldo Curvelo levantou a barra da calça, para ver o arranhão. Pepone deu-lhe um empurrão e, raivoso, não deixou ninguém examinar a perna. Heraldo sacou o lance e espalhou ‘-A perna de Pepone é branca, por isso ele não quer mostrar !’. E, de fato, durante muitos anos ninguém nunca veria a perna de Pepone !
Quando em Poções chegou a moda do ‘twist’, trazida pelos sobrinhos do Dr. Jofre, Pepone sentiu que ia se dar bem, e dançava o ‘twist’ com maestria, aprendendo logo todas as artimanhas da dança, brilhando no salão.
Nos passeios à fazenda Caititú, Pepone fazia parte de todas as diversões. Inclusive no dia em que jogou de volta ao açude os peixes que Fidelis havia pescado. Perguntado porque havia feito isso, Pepo respondeu, inocentemente: “-Joguei porque eles estavam mortos. Você por acaso come peixe morto ?’
Pepone foi estudar em Jequié, no Ginásio do Padre, no caso o Spínola. Aquele mesmo que comprou o título de ‘Marquês de Monte Maggiore’. Lascivo, o padre afagava o seio das ginasianas, enquanto comentava ‘-Escudinho novo, em ?’ No escudo, dizia Pepone, estava escrito ‘Antes morrer do que perder a vida’. Tradução absolutamente incorreta de ‘Magis mori quam amittere honorem’. Soube posteriormente que a frase do escudo era “Sic itur ad astra” : 'Assim se vai aos astros' !
Fomos contemporâneos novamente no Marista, em Salvador. Na época o ponto do ônibus para Poções era na Rua Direita da Piedade, em uma pensão. No final do ano letivo Pepone preparou a mala de couro, para ir passar as férias em Poções. Tudo pronto, acordou, pegou a mala e rumou para a pensão. Sem ter consultado as horas, chegou lá cedo demais, três horas da madrugada ! E o ônibus só partiria às sete. Não voltou, esperou.
Pepone já namorava Zilma, quando fomos a Conquista visitá-la. Por artimanhas do destino, Vane estava com ela, e passamos a tarde juntos. Éramos dois filhos de imigrantes italianos ‘paquerando’ duas moças de tradicionais famílias de Poções e Conquista.
Vane, dirigindo um fusca azul, acompanhou o nosso ônibus, ela e Zilma acenando para dois adolescentes deslumbrados no vidro traseiro.
No folclore de Poções consta que, Pepone e Zilma estavam sentados no banco da praça. Na falta de assunto, Pepone vira-se para ela, repentinamente e grita ‘-Olha a faca !’. Era uma brincadeira, na época, entre os rapazes. Zilma nega, diz que não foi com ela.
Para um espírito alegre e festivo como o de Pepone, o Carnaval vinha a calhar. Tanto na festa de rua como na do Clube Social de Poções, Pepone estava sempre no primeiro plano. Em um dos carnavais Pepone apresentou-se no Clube simplesmente fantasiado de ‘Seu Corinto’ ! Meu pai tinha uma indumentária característica, que consistia em sapatos pretos ‘Clark’, calças folgadas, suspensórios , gravata e camisa esporte mas de manga comprida. Por último um chapéu de massa. O sucesso foi imediato, e Pepone brilhou no salão, aplaudido inclusive pelo animado ‘tio Corinto’.
Quando algumas das nossas famílias moravam na Rua Araújo Pinho, no edifício Antônio de Pádua, construído por Garibaldo Santana, o ponto de encontra do final da tarde era no espanhol da esquina. Fidelis de Boa Nova estava sempre lá, pontualmente, e os chegantes se agrupavam ao lado do balcão, e o papo era comandado por Fidelis, que pagava a cerveja e as rodelas de saleme servidas em um papel grosso. Mas Pepone não queria saber de papo sério, e levava logo tudo para a brincadeira. Fidelis, sem tirar o cigarro da boca, comentava ‘-Pepone não paga nem a cerveja !’, ou seja, o papo de Pepone não valia a cerveja de Fidelis !
Quando, na época da ditadura, eu estava em Belo Horizonte, mais especificamente em Contagem, clandestino e realizando o trabalho politico do Partido, na época Ação Popular, recebi um comunicado que um primo queria me ver. Era Pepone. Meu pai estava doente e Pepone havia se arriscado, naquelas duras condições, a fazer contato com o Partido e ir até Minas Gerais me buscar. Retornamos e encontrei meu pai abatido mas lúcido, e pude ter com ele a minha penúltima confraternização. E isso graças a Pepone.
Pepone foi sempre ‘persona gratíssima’ em todas as festividades da família. Quando não tinha nenhuma festa prevista, ele inventava um pretexto e levava todos para Itacimirim, onde pontificava saborosos churrascos em seu sítio.
Na viagem à Itália, privilegiou o encontro com a família, em Mormanno. Sempre de bom humor, curioso, comunicativo. Pepo ainda falava o ‘mormanolo’, e os parentes acharam engraçado ele ainda usar a expressão ‘gaddrina’, para se referir a ‘galinha’.
Já nos Estados Unidos Pepone gostava de computar os preços, visitar as liquidações e na volta fazia um verdadeiro relatório sócio-economico. Sem falar que chegou a comprar duas grandes malas, para trazer artigos que estavam em liquidação.
O roteiro dos supermercados, em Salvador, era para ele um prazer. E se alegrava quando podia indicar para outros clientes onde havia uma promoção.
Na Prefeitura, onde trabalhava, era sempre um ponto de referência, e vários amigos e funcionários perguntavam por ele quando nos encontravam.
Sempre muito afetuoso e prestativo, sempre presente nas horas difíceis da família.
Creio que seu maior sentimento foi ver, no seu enterro, tanta gente, e ele sem poder oferecer um churrasco !
Pepone está em paz, e em sua memória devemos manter a alegria e a fraternidade que ele nos deixou.
(Eduardo Sarno- 20/10/23)